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[339.] Gainsbourg (Vie Heroïque)

Nada permita aferir melhor os valores da sociedade em cada momento do que saber quais os anúncios proibidos pelos metropolitanos das metrópoles. Há tempos, o Metro de Londres proibiu um anúncio de um museu reconhecidíssimo que reproduzia um quadro do século XVI mostrando uma mulher nua. Agora chegou a vez do Metro de Paris: proibiu um cartaz a um filme mostrando mostrando o quê?

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Nada permita aferir melhor os valores da sociedade em cada momento do que saber quais os anúncios proibidos pelos metropolitanos das metrópoles. Há tempos, o Metro de Londres proibiu um anúncio de um museu reconhecidíssimo que reproduzia um quadro do século XVI mostrando uma mulher nua. Agora chegou a vez do Metro de Paris: proibiu um cartaz a um filme mostrando… mostrando o quê?

Veja o leitor o cartaz: Gainbourg (Vie Héroïque) é um novo filme, realizado por Joann Sfar, sobre o cantor, compositor e artista francês Serge Gainsbourg, um dos grandes nomes da canção francesa (1928-1991). Não se trata de um filme secundário. Realizado pela coqueluche da banda desenhada, Johann Sfar, as personagens e seus intérpretes incluem Lucie Gordon (no papel de Jane Birkin), Laetitia Casta (Brigitte Bardot), Anna Mouglalis (Juliette Greco), Sara Forestier (France Gall), Mylène Jampanoï (Bambou) et Philippe Katerine (Boris Vian).

O cartaz proibido resume-se, além da mensagem escrita com a ficha técnica do filme, a uma parte de uma fotografia a preto e branco. Em grande plano, o perfil do actor que representa Gainbourg, Eric Elmosnino. A iluminação é forte e constrastada, indiciando uma pose com drama num ambiente nocturno. E da boca do homem sai uma coluna de fumo. Não se vê cigarro, charuto ou cachimbo, apenas o fumo. O fumo indicia fogo, aqui simboliza fogo: uma vida a arder, a combustão pelo excesso, a energia da criação artística.



Gainsbourg aparece de cigarro na mão em inúmeras das cenas do filme, porque era realmente um fumador inveterado. Todas as imagens ligadas à banda sonora e ao filme, que estreará a 20 de Janeiro, mostram o fumo saindo do músico. Apagar o cigarro seria absurdo, mas a censura politicamente correcta contra o cigarro já vitimou no passado André Malraux, escritor e ministro da Cultura de De Gaulle, a quem os correios franceses fizeram desaparecer o cigarro na boca de uma fotografia célebre, não fosse a brasa pegar fogo aos selos. Num cartaz da cinemateca Francesa, ao realizador e actor Jacques Tati o mesmo Metro de Paris fez esconder o cachimbo, imagem de marca da sua personagem Hulot. Nos filmes nunca ele acendeu o cachimbo, mas nem isso demoveu os censores. A Cinemateca optou por colocar um moinho de vento de brincar na boca de Tati, evidenciando a censura. Nos Estados Unidos, o cigarro também já desapareceu de várias imagens fotográficas, nomeadamente de selos. A estupidez da censura parisiense já tinha feito desaparecer o rabo do boneco de um cão do filme 102 Dálmatas.

Os autores do cartaz agora proibido pelo Metro de Paris tinham tido o cuidado de seguir as normas da lei sobre a publicidade do tabaco, omitindo cigarro ou beata da imagem, mas os censores não se preocupam com subtilezas dessas. Se sai fumo da boca de uma pessoa, mesmo que historicamente ela fosse fumadora, censura-se. A censura protege os medíocres medrosos que, neste caso, recearam enfrentar eventuais queixas dos novos puritanos caso o cartaz fosse exposto no Metro de Paris.

Este tipo de situações ocorrerá cada vez mais, porque há sempre grupos descontentes, com isto ou aquilo, por motivos morais, religiosos ou outros. O poder das minorias em democracia permite que cada minoria consiga agir de modo a limitar a liberdade de outra ou de outras minorias, liberdade essa que, note-se, é a de todos quando se trata da liberdade de expressão.

O Metro de Londres fez desaparecer uma obra de arte, o Metro de Paris faz desaparecer um artista. Neste caso, o motivo foi o tabaco, mas a censura é lamentável, não por pretender defender quem quer que se sentisse atraído pelo vício devido ao cartaz, mas porque se tratava de uma versão estetizada do fumo, atribuindo o valor simbólico da transgressão e do excesso e com confirmação factual histórica. As leis que permitem, e bem, censurar excessos publicitários, também deveriam permitir censurar a própria censura que permitem.

--- ect@netcabo.pt

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