Opinião
[272.] O "Óleo Cefálico"
César Birotteau tem uma loja onde vende perfumaria, a "Rainha das Rosas". Como o comércio não lhe permite amealhar a felicidade, resolve "enriquecer mais rapidamente" juntando o fabrico à venda a retalho. Num livro à venda na rua, "leu uma nota em que o autor explicava a natureza da derme e da epiderme" e uns vagos conselhos sobre produtos para a pele.
Procurou então um químico célebre, Vauquelin, que o protegeu e "permitiu-lhe dizer-se inventor de uma pasta para branquear as mãos". Birotteau chamou-lhe a "Dupla Pasta das Sultanas" porque naquele tempo "os homens desejavam tanto ser sultões como as mulheres tornarem-se sultanas".
Birotteau foi o primeiro dos perfumistas a publicitar os seus produtos num "luxo de cartazes" e fez um prospecto — um anúncio — em que a sua pasta era anunciada como uma "descoberta maravilhosa aprovada pelo Instituto de França", isto é, por Vauquelin. Estas acções publicitárias foram acompanhadas por uma estratégia comercial que passou por aumentar a margem de comercialização aos perfumistas de todo o país e do estrangeiro. Com os lucros, Birotteau aumentou o negócio e melhorou a casa de família.
Dezasseis anos depois, Birotteau precisa de um novo produto para "arruinar" a concorrência. Inventa um óleo de avelãs para esfregar no couro cabeludo, tentando convencer as pessoas da acção do óleo contra a calvície. De novo, procura Vauquelin para que sancione o produto. O químico diz-lhe que qualquer óleo, a começar pelo azeite, faria o mesmo efeito. Birotteau esconde essa informação porque o público deixaria de necessitar do óleo de avelã, deixando de pagar caro pelo extracto do fruto. Passos seguintes: Birotteau arranja frascos com "a originalidade da forma", pequenas garrafas de vidro delgado empalhadas em vime, aumenta o desconto aos retalhistas e contrata um "homem de letras", vaidoso, que lhe escreve novo prospecto e inventa um nome para o produto, com ar científico: "Óleo Cefálico", por ser para a cabeça.
Tal como o anterior, o prospecto inventa invoca autoridade científica. Apresenta o produto como medalhado em ouro numa exposição e di-lo "baseado" nos "princípios estabelecidos pela Academia das Ciências". O argumento de autoridade é reforçado com referência a antigas receitas da Antiguidade. O óleo passa a "essência". O prospecto compara este produto com os da concorrência, não mencionada, usando o argumento de que é ou faz "mais do que". O uso do óleo obriga a criar um novo hábito na forma de usar o produto na cabeça. A garantia do produto é dada pelo próprio fabricante, numa manobra redundante destinada a sossegar o cliente e a reforçar o ar científico.
O prospecto anterior visava públicos-alvo (homens e mulheres), com argumentos para cada um; o "Óleo Cefálico" também usa linguagem para convencer dois públicos-alvos receosos da calvície, os homens velhos e novos. O palrar científico do anúncio é justificado pelo publicitário por se viver no "período da ciência, é preciso um ar doutoral, um tom de autoridade para nos impormos ao público". E, dando-se-lhes 40% de margem, os comerciantes "ludibriarão o seu público" com o "Óleo Cefálico". Esta estratégia industrial, publicitária e de marketing está no brilhante romance Grandeza e Decadência de César Birotteau, de Honoré de Balzac, publicado em 1838. Os momentos que referi passam-se em 1810 e 1826. Vários dos ingredientes da publicidade actual estão já nos seus dois incipientes anúncios. O mundo capitalista é o mesmo. Tão próximo de nós que o lado mais selvagem do capitalismo — patente na crise actual — está exposto com brutal realismo no romance. Os leitores actuais que não conheçam Balzac — um dos grandes romancistas — estranharão que, em 1838, um romance pudesse, como este, dedicar dezenas e dezenas de páginas às mais incríveis manobras financeiras, mas era assim o mundo naquele tempo, de que somos herdeiros. A esse mundo em ascensão do dinheiro correspondiam os sonhos de enriquecer, de bem viver e de bem aparecer. A publicidade é o resultado desse mundo de indústria, serviços, dinheiro, desejos e sonhos. Ela tinha que ser assim, assim como está nas páginas de César Birotteau. Na próxima semana tentarei procurar semelhanças entre o "Óleo Cefálico" e os anúncios actuais de produtos para os nossos cabelos, tão vaidosos como os de 1826.
Birotteau foi o primeiro dos perfumistas a publicitar os seus produtos num "luxo de cartazes" e fez um prospecto — um anúncio — em que a sua pasta era anunciada como uma "descoberta maravilhosa aprovada pelo Instituto de França", isto é, por Vauquelin. Estas acções publicitárias foram acompanhadas por uma estratégia comercial que passou por aumentar a margem de comercialização aos perfumistas de todo o país e do estrangeiro. Com os lucros, Birotteau aumentou o negócio e melhorou a casa de família.
Tal como o anterior, o prospecto inventa invoca autoridade científica. Apresenta o produto como medalhado em ouro numa exposição e di-lo "baseado" nos "princípios estabelecidos pela Academia das Ciências". O argumento de autoridade é reforçado com referência a antigas receitas da Antiguidade. O óleo passa a "essência". O prospecto compara este produto com os da concorrência, não mencionada, usando o argumento de que é ou faz "mais do que". O uso do óleo obriga a criar um novo hábito na forma de usar o produto na cabeça. A garantia do produto é dada pelo próprio fabricante, numa manobra redundante destinada a sossegar o cliente e a reforçar o ar científico.
O prospecto anterior visava públicos-alvo (homens e mulheres), com argumentos para cada um; o "Óleo Cefálico" também usa linguagem para convencer dois públicos-alvos receosos da calvície, os homens velhos e novos. O palrar científico do anúncio é justificado pelo publicitário por se viver no "período da ciência, é preciso um ar doutoral, um tom de autoridade para nos impormos ao público". E, dando-se-lhes 40% de margem, os comerciantes "ludibriarão o seu público" com o "Óleo Cefálico". Esta estratégia industrial, publicitária e de marketing está no brilhante romance Grandeza e Decadência de César Birotteau, de Honoré de Balzac, publicado em 1838. Os momentos que referi passam-se em 1810 e 1826. Vários dos ingredientes da publicidade actual estão já nos seus dois incipientes anúncios. O mundo capitalista é o mesmo. Tão próximo de nós que o lado mais selvagem do capitalismo — patente na crise actual — está exposto com brutal realismo no romance. Os leitores actuais que não conheçam Balzac — um dos grandes romancistas — estranharão que, em 1838, um romance pudesse, como este, dedicar dezenas e dezenas de páginas às mais incríveis manobras financeiras, mas era assim o mundo naquele tempo, de que somos herdeiros. A esse mundo em ascensão do dinheiro correspondiam os sonhos de enriquecer, de bem viver e de bem aparecer. A publicidade é o resultado desse mundo de indústria, serviços, dinheiro, desejos e sonhos. Ela tinha que ser assim, assim como está nas páginas de César Birotteau. Na próxima semana tentarei procurar semelhanças entre o "Óleo Cefálico" e os anúncios actuais de produtos para os nossos cabelos, tão vaidosos como os de 1826.
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