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04 de Janeiro de 2012 às 23:30

2011: ano "horribilis" ou o ano revelação?

Nunca, desde a Segunda Guerra Mundial, o debate ideológico, no plano económico, foi tão profundo e determinante dentro da Europa dita ocidental, pois, na Guerra Fria, o debate era sobretudo entre "nós e os outros".

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Nunca, desde a Segunda Guerra Mundial, o debate ideológico, no plano económico, foi tão profundo e determinante dentro da Europa dita ocidental, pois, na Guerra Fria, o debate era sobretudo entre "nós e os outros".

Terminou recentemente o ano de 2011. Um ano "horribilis" para o modelo social europeu. Utilizando o medo, o Estado e as suas funções sociais foram atacadas como nunca antes. Um ano interessante, porém, é verdade, pois assistiu-se também à queda de muitas narrativas simplistas e populistas que descreviam as suas supostas.

O ano terminou melhor do que começou. À medida que foi terminando, as interpretações iam tropeçando com a realidade as narrativas mudando. Tornou-se hoje evidente que a crise é global.

No caso português os paradoxos e as inversões foram ainda mais evidentes. Para muitos, sejam políticos, economistas ou cronistas, foi também, assim, um Ano de Revelação sobre as caraterísticas da crise, tal a inversão de entendimentos.

Mais vale tarde que nunca, diz o Povo.

A primeira das ideias a cair, entre nós, foi a de que a crise era nossa, e só nossa. Na Europa, com a com a Alemanha à cabeça, também tombou a ideia de que a crise era o resultado dum laixismo genético duns países periféricos e mediterrânicos. Esta narrativa demorou meses a mudar e alimentou nacionalismos e populismos. Atrasou, inclusive, meses as soluções de política económica que se impunham, com custos devastadores. Os mercados andaram à vontade a sugar nações. Foi preciso, ao fim de quase um ano, depois duma trajetória pré-anunciada, que culminou com o perigo de derrocada de grandes nações, logo de todo o equilíbrio económico europeu, para que a narrativa se alterasse e se procurassem soluções mais ambiciosas.

Portugal apresentava em 2007 um peso da divida pública no PIB de 75,4%, dentro do valor médio na OCDE, na altura em 73,3%. Para fazer face à crise, e seguindo orientações de estímulo à procura, emanadas assertivamente quer da UE, do FMI ou da própria OCDE, para evitar o caos da crise financeira de 2008, todos os Estados ocidentais fizeram disparar as responsabilidades financeiras. A OCDE passou para 97,9%, em 2010, um aumento de 23,3 pp. Portugal para 103,6, seguindo assim a trajetória média. Todos acompanharam, seja a Alemanha (de 69,7 para 87,1), o Reino Unido (de 46 para 82,2), a Itália de 116,9 para 126,1) ou o caso Irlandês de 29,2 para 98,5). Recorda-se ainda, Portugal tinha terminado 2007 com um défice, na altura, abaixo dos 3%, o mais baixo em democracia, e só aproximado do valor de 2002. Pareceu, em determinada altura, que a dívida pública era invenção mediterrânica, coisa de gregos e portugueses.

Outro dos mitos, que completava este, ainda bem vivo, liga-se, supostamente, ao fato, dito único e contracorrente, de Portugal não ter crescido durante a primeira década do século XXI. É verdade, Portugal quase estagnou. Entre 2000 e 2010, cresceu apenas cerca de 1% ao ano, em média. O que não se disse, ou não se diz, é que em toda a Europa o problema foi semelhante. O crescimento da zona Euro, nestes 11 anos, foi de 1,4% em média. Países como a Itália ou a Dinamarca tiveram médias de crescimento inferiores e a França muito próximo de 1,3%. A estagnação do crescimento foi de fato um problema, mas europeu e não português.

Foi a partir destas narrativas que se construíram ou adiaram soluções, impostas radicalmente às regiões mais afetadas, todas baseadas numa redução drástica da procura, reforçada pela essência da crise pós 2008, profunda "desalavacagem" monetária. O resultado está a ver-se, a região da UE, e da própria OCDE, uma profunda desaceleração do crescimento económico, um agravamento o desemprego, a descida da receitas fiscais previstas, o aumento do peso das dividas no PIB e, sobretudo, a inviabilização, caso seja continuada, do serviço da divida.

A realidade tornou evidente que o problema é transnacional e global.

A solução tem de passar, obrigatoriamente, por uma política monetária e orçamental mais expansionistas. O ano terminou, na Europa, com a procura de solução mais ambiciosas. Embora, reconheça-se, a chocarem ainda com o dogma do não financiamento monetário dos défices e as reticências do BCE.

Há neste debate, porém, dois tabus que não se ousa enfrentar. Um, as "off shores". Outro, o défice externo europeu e os seus contornos assimétricos na União, incluindo aqui os desequilíbrios das contas externas e o famoso tema da competitividade.

A Europa é deficitária. Importa mais cerca 150 mil milhões de Euros do que exporta. Com a China o défice é colossal e não para de subir: 113,1 de exportações contra 281,9 mil milhões de Euros de entradas. Com a Rússia, 86,5 contra 158,4 mil milhões. Nesta relação, incluindo com a China, a Alemanha é uma exceção, sendo superavitária, pelo seu padrão de especialização. Um défice desta dimensão, nomeadamente com a China, associado a relações laborais perfeitamente desequilibradas, tem várias soluções, todas elas pragmaticamente compatíveis com a liberalização crescente dos mercados, basta aliás ver Bretton Woods. Não é pela destruição do modelo social europeu, e pela aproximação ao modelo chinês, ou mesmo russo, julga-se, que se pode construir um padrão internacional de comércio.

É neste debate que se vai entrar em 2012. Um debate pelo futuro da Europa. Este debate também se joga em Portugal, obviamente, até porque o nosso destino depende dele sobretudo. Nunca, desde a Segunda Guerra Mundial, o debate ideológico, no plano económico, foi tão profundo e determinante, dentro da Europa dita ocidental, pois, na Guerra Fria, o debate era sobretudo entre "nós e os outros".


Economista, ISCTE
Texto redigido segundo o Novo Acordo Ortográfico
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