Opinião
Raríssimas: os perigos do "spin" político
O caso Raríssimas tem sido exemplar do talento do PS e da restante esquerda para o "spin" político.
Sempre que há um problema deste tipo com pessoas da direita, sempre que é do outro lado que se geram suspeitas de promiscuidade ou desleixo na gestão dos dinheiros públicos, trata-se de um problema intrínseco à direita. Porque a direita tem no sangue a captura do estado por interesses privados, porque é seu imperativo ideológico fragilizar o Estado, porque se as pessoas são de direita é porque à partida estão moralmente inquinadas e são naturalmente mal-intencionadas.
Já se o problema envolver pessoas da esquerda, directamente ou à tangente, há todo um outro protocolo que tem de ser respeitado. Em primeiro lugar, é preciso encontrar uma forma de culpar alguém da direita. Se tal não for possível ou suficiente, há que chutar a discussão para a atmosfera, falando do maior número possível de questões acessórias e dizendo que, no fundo, o problema é intrínseco a Portugal. O que importa é desviar as atenções do caso concreto, dizendo que é preciso retirar dele as "lições importantes". Curioso método de aprendizagem, esse de se retirarem lições de um caso particular sem se querer olhar para as particularidades do próprio caso.
Nos últimos dias este guião foi cumprido escrupulosamente. O caso envolvia referências a um ministro do PS, a um secretário de estado do PS e a uma deputada do PS? Então toca a falar do anterior governo, de Maria Cavaco Silva e da amizade da presidente da Raríssimas com políticos do PSD. Foi isto que andaram a fazer muitos comentadores afectos à geringonça, enquanto declaravam não perceber o que poderia levar o secretário de estado à demissão. Sim, há quem não tenha percebido que o governante terá aparentemente aceitado ser uma correia de transmissão entre a instituição e o favoritismo do poder político, o que o colocou numa posição dúplice, conflituosa e objectivamente insustentável. Uma vez que este "spin" era muito fraquinho, começou então a falar-se dos temas laterais, desde os princípios do jornalismo às relações entre o Estado e o sector social.
Tudo isto daria apenas para rir se não fossem os perigos que aqui se revelam. Por um lado, o caso mostra uma classe política em constante transe de desresponsabilização, um tique que só contribui para a desconfiança na democracia. Por outro lado, a estratégia da esquerda de desviar as atenções para os "temas importantes" teve, para já, o efeito imediato de colocar no ar a dúvida sobre a bondade do terceiro sector. No PS, no BE e no PCP vimos dirigentes a deslegitimá-lo, a falar da urgência de rever o seu estatuto e de reverter o "recuo do Estado" no apoio social.
Este ataque assenta em dois erros. Primeiro: o Estado não "recuou". Muitas vezes as IPSS e as Misericórdias estão onde o Estado nunca esteve. Em muitas matérias, e em grande parte do território nacional, nomeadamente no interior, as instituições particulares são o único auxílio sério a quem delas precisa, e são um factor importante de agregação social e económica. Querer fragilizá-las é uma irresponsabilidade grotesca. Segundo: o sector social não é uma espécie de válvula de escape da ausência do Estado. Nas sociedades livres os recursos gerados pela comunidade devem também ser administrados, em nome do bem de todos, pelas instituições da própria comunidade. Essa é uma marca das sociedades livres. Convém não brincar com o assunto.
Advogado