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01 de Novembro de 2016 às 18:16

O tom ufano

"Songs of Love", uma das grandes canções que Neil Hannon escreveu nos Divine Comedy, tem um excerto que me acompanha desde a adolescência: "Fate doesn't hang on a wrong or right choice/Fortune depends on the tone of your voice."

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Os versos formam um epigrama, ou um aforismo, que venho carregando no bolso, porque são um aviso de que nem sempre na vida ganham as escolhas racionais. Muitas vezes o que nos convence é uma certa empatia ou confiança inexplicáveis na maneira de ser de quem nos quer convencer. Para ter sucesso neste mundo, valerá mais a pena procurar o tom de voz certo do que a solução acertada? Talvez seja excesso de pessimismo. Ainda assim, conservar algum cinismo é sempre uma precaução útil.

 

Hannon não canta sobre a política (o título da canção não engana). Mas a política é uma arte da persuasão, pelo que o princípio também se aplica aí: o que não faltam são exemplos de como na política se dá mais importância à personagem do que à mensagem. E quando se fala da personagem, fala-se normalmente do seu "carisma".

 

O "carisma", tema com tradição sólida no pensamento político ocidental, acaba de receber de Portugal um novo contributo para a sua doutrina. José Sócrates, sendo José Sócrates, não quis deixar de juntar o seu nome às lombadas que adornam as melhores bibliotecas. Por isso escreveu "O Dom Profano - Considerações sobre o carisma".

 

Não li a obra de Sócrates. A vontade de o fazer, confesso, é tanta quanto aquela que sempre senti de votar no ex-primeiro-ministro. Sei todavia, através de quem já leu o livro, que pelo menos as referências bibliográficas são boas (ainda que óbvias). Consta que anda por lá Max Weber, como não poderia deixar de ser: é de Weber uma das mais conhecidas teorias sobre as diversas formas de legitimação do exercício do poder do Estado (enquanto detentor do monopólio do uso legítimo da violência física dentro de um determinado território). Para Weber, o líder carismático é aquele que se impõe pelo seu heroísmo excepcional, pelo carácter exemplar ou pela validade irrefutável dos padrões normativos por si emanados.

 

Porventura, com este livro José Sócrates quer dar a entender que ele próprio é a bitola do líder carismático (se for bom cábula, há-de ao menos reconhecer os riscos de que Weber fala - a arbitrariedade antijurídica, o autoritarismo, o culto da personalidade). De facto, até cair em desgraça era como tal que muita gente o via. Sócrates era um líder forte e quase infalível, e isso chegava para que fosse definido como "carismático".

 

O problema é que uma liderança forte não é necessariamente uma liderança carismática. O caso de Sócrates prova-o. Sabemos muito bem como exerceu a sua autoridade - com a permanente tentativa de submeter ao poder político toda a vida social e económica do país. Era uma ordem cuja aceitação não decorria da virtude incontestável do chefe, mas de uma rede intrincada de cumplicidades, de peões leais colocados nos lugares que interessam.

 

Sócrates só era "carismático" na aparência. Na toada crispada, na truculência com que debatia com os adversários, na fanfarronice com que se vangloriava, no sempiterno ruído narcísico da voz com que encantava a sua claque. Tudo bem espremido, o que distinguiu o político José Sócrates nunca foi o "dom profano" do seu carácter. Foi sempre, simplesmente e apenas, o tom ufano da sua voz.

 

Advogado

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