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08 de Agosto de 2017 às 19:58

Matrículas e moradas falsas: uma polémica sonsa

Não me lembro de uma polémica tão sonsa quanto a que há uns dias surgiu a propósito das moradas falsas que muitos pais declaram para assegurar que os seus filhos ingressam nas escolas públicas com melhor reputação.

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Sendo este um caso gritante de desigualdade no acesso aos recursos do Estado - em que, por causa de uma prática antiga e generalizada, as melhores escolas estão mais disponíveis para uma elite urbana com maior informação e "contactos" -, então por que razão o assunto só agora descambou em polémica pública?

 

A verdade é que utilização de moradas falsas não é só uma prática antiga e generalizada; é um expediente aceite por sucessivas gerações de pais e directores escolares, e tolerado por todos os governos das últimas décadas. E é óbvio, por isso, que a polémica só agora estalou porque em duas das escolas mais desejadas do centro de Lisboa a procura foi claramente superior à oferta e os filhos de muito boa gente ficaram de fora.

 

O que, aliás, tinge a polémica com um curioso tom de ironia. Será que a indignação dos pais teria chegado aos jornais nacionais se estivéssemos a falar de outras escolas, de outras cidades, e não de "liceus" como "o Pedro Nunes" e "o Filipa" (de Lencastre), que formam parte das elites com maior acesso à comunicação social? Duvido. A denúncia da captura da escola pública pelas elites foi, ela própria, um movimento das elites.

 

Nada disto recomenda que não se discuta o tema, naturalmente. Nem impede que se reconheça a existência de um problema grave na organização do Estado. O que já me parece absurdo é tratar como delinquentes os pais que recorrem às moradas falsas como forma de escolherem a escola pública que acham melhor para os filhos, contornando um sistema que os quer tornar obrigatoriamente reféns do sítio onde moram.

 

Se o esquema tem beneficiado da tolerância dos poderes públicos é também porque existe uma convicção, transversal e maldisfarçada, de que o sistema legal é profundamente injusto e socialmente inadequado.

 

O que separa o igualitarismo democrático do autoritarismo centralista são o reconhecimento e o respeito pelas liberdades e instintos legítimos dos indivíduos. A liberdade de educação é uma dessas liberdades; o instinto de proporcionar aos filhos a melhor instrução possível é um desses instintos. Em Portugal, é suposto que ambos sejam sacrificados no altar de um Estado que, no que respeita ao acesso à escola pública, ainda trata as pessoas como um rebanho acrítico, burocraticamente distribuído por circunscrições desenhadas a régua e esquadro.

 

A grande sonsice da polémica é precisamente essa: a de quem discute o tema sem falar do quão absurdo é, numa sociedade liberal moderna, o sistema em vigor.

 

Felizmente há quem fuja ao discurso quadrado do simples revanchismo incriminador. A ex-ministra socialista Maria de Lurdes Rodrigues lembrou bem que "a associação rígida entre residência e acesso à escola tem efeitos perversos", porque "a desigualdade social e económica se traduz em segregação residencial" ("Falsas moradas e desigualdade escolar", DN, 2.8.2017), e o colunista Alexandre Homem Cristo, especialista em matérias educativas, ofereceu exemplos de países com sistemas que conciliam o igualitarismo com a liberdade de educação ("Ninguém quer resolver o problema das matrículas", Observador, 7.8.2017).  

 

"Dura lex sed lex", bem sei. Mas a História está repleta de leis que caducaram por inadequação social, muito antes de serem revogadas e substituídas. Este pode muito bem ser um desses casos.

 

Advogado

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