Opinião
Matrículas e moradas falsas: uma polémica sonsa
Não me lembro de uma polémica tão sonsa quanto a que há uns dias surgiu a propósito das moradas falsas que muitos pais declaram para assegurar que os seus filhos ingressam nas escolas públicas com melhor reputação.
Sendo este um caso gritante de desigualdade no acesso aos recursos do Estado - em que, por causa de uma prática antiga e generalizada, as melhores escolas estão mais disponíveis para uma elite urbana com maior informação e "contactos" -, então por que razão o assunto só agora descambou em polémica pública?
A verdade é que utilização de moradas falsas não é só uma prática antiga e generalizada; é um expediente aceite por sucessivas gerações de pais e directores escolares, e tolerado por todos os governos das últimas décadas. E é óbvio, por isso, que a polémica só agora estalou porque em duas das escolas mais desejadas do centro de Lisboa a procura foi claramente superior à oferta e os filhos de muito boa gente ficaram de fora.
O que, aliás, tinge a polémica com um curioso tom de ironia. Será que a indignação dos pais teria chegado aos jornais nacionais se estivéssemos a falar de outras escolas, de outras cidades, e não de "liceus" como "o Pedro Nunes" e "o Filipa" (de Lencastre), que formam parte das elites com maior acesso à comunicação social? Duvido. A denúncia da captura da escola pública pelas elites foi, ela própria, um movimento das elites.
Nada disto recomenda que não se discuta o tema, naturalmente. Nem impede que se reconheça a existência de um problema grave na organização do Estado. O que já me parece absurdo é tratar como delinquentes os pais que recorrem às moradas falsas como forma de escolherem a escola pública que acham melhor para os filhos, contornando um sistema que os quer tornar obrigatoriamente reféns do sítio onde moram.
Se o esquema tem beneficiado da tolerância dos poderes públicos é também porque existe uma convicção, transversal e maldisfarçada, de que o sistema legal é profundamente injusto e socialmente inadequado.
O que separa o igualitarismo democrático do autoritarismo centralista são o reconhecimento e o respeito pelas liberdades e instintos legítimos dos indivíduos. A liberdade de educação é uma dessas liberdades; o instinto de proporcionar aos filhos a melhor instrução possível é um desses instintos. Em Portugal, é suposto que ambos sejam sacrificados no altar de um Estado que, no que respeita ao acesso à escola pública, ainda trata as pessoas como um rebanho acrítico, burocraticamente distribuído por circunscrições desenhadas a régua e esquadro.
A grande sonsice da polémica é precisamente essa: a de quem discute o tema sem falar do quão absurdo é, numa sociedade liberal moderna, o sistema em vigor.
Felizmente há quem fuja ao discurso quadrado do simples revanchismo incriminador. A ex-ministra socialista Maria de Lurdes Rodrigues lembrou bem que "a associação rígida entre residência e acesso à escola tem efeitos perversos", porque "a desigualdade social e económica se traduz em segregação residencial" ("Falsas moradas e desigualdade escolar", DN, 2.8.2017), e o colunista Alexandre Homem Cristo, especialista em matérias educativas, ofereceu exemplos de países com sistemas que conciliam o igualitarismo com a liberdade de educação ("Ninguém quer resolver o problema das matrículas", Observador, 7.8.2017).
"Dura lex sed lex", bem sei. Mas a História está repleta de leis que caducaram por inadequação social, muito antes de serem revogadas e substituídas. Este pode muito bem ser um desses casos.
Advogado