Opinião
Em defesa do Tribunal Constitucional alemão
Os Estados-membros têm todo o direito – mais: têm a obrigação – de verificar se as decisões das instituições europeias respeitam ou não o quadro de poderes que legitimamente foram transferidos.
Tenho reservas quanto à decisão do Tribunal Constitucional alemão sobre o programa de compra de activos do BCE (já lá vou). Mas pior do que ela é o bullying que se abateu sobre os juízes de Karlsruhe, como se fossem uma quinta coluna da extrema-direita, quando se limitaram a afirmar os princípios constitucionais democráticos sobre os quais estão construídos quer a Alemanha quer a União Europeia. Com tamanha confusão que por aí há sobre esses princípios, especialmente na cabeça daqueles que os dizem defender, não admira que a democracia na Europa esteja em perigo.
Por trás da decisão há um pressuposto simples: é a UE que depende dos Estados-membros, não são os Estados-membros que dependem da UE. A União não tem outra legitimidade que não a que tem origem nos Estados, nem outros poderes de soberania para além dos que os Estados lhe quiseram conferir. A UE é o resultado possível de um mosaico de 27 legitimidades constitucionais? É. Isso dificulta-lhe a vida? Claro. Mas é também isso que lhe garante uma legitimidade democrática minimamente discernível.
Os Estados-membros têm todo o direito – mais: têm a obrigação – de verificar se as decisões das instituições europeias respeitam ou não o quadro de poderes que legitimamente foram transferidos. Só assim defendem os direitos dos seus cidadãos e as constituições nacionais que os consagram. Num Estado de direito, é nos tribunais que em última análise isso se faz.
E foi precisamente isso que o tribunal alemão fez. Como já escreveu neste jornal Bruno Faria Lopes, se o Bundesbank participa no programa do BCE, se tem de comprar títulos de dívida que representam um risco financeiro para os cidadãos alemães, e se o Parlamento nacional não foi tido nem achado, é difícil discordar de que talvez haja aqui uma violação da soberania orçamental alemã.
Ao contrário do que tenho lido, incluindo num comunicado da Comissão (com aquele tom seco e impiedoso dos burocratas que acham que estão a revelar uma verdade divina, que não carece de mais pormenores ou explicações), os juízes alemães não põem em causa a primazia do direito europeu sobre o direito nacional, nem a prevalência do Tribunal de Justiça da UE para o interpretar, nem sequer a exclusividade das competências do BCE em matéria de política monetária. Dentro dos limites dos poderes que lhes foram transferidos pelos Estados-membros, as instituições europeias podem fazer o que entenderem.
O que está em causa é uma questão mais específica e complexa, porventura anterior a tudo isso: e se as instituições decidem actuar fora daqueles limites? Quem decide se o fizeram ou não? Só o Tribunal de Justiça? Os Estados, que são a fonte dos poderes, não podem dizer nada? Não podem questionar se a interpretação que a UE faz dos seus poderes a atira para fora das fronteiras da sua legitimidade?
Imaginemos que a UE decidia que a partir de agora era a Comissão ou o Conselho, em vez dos parlamentos nacionais, quem passava a ter a última palavra sobre a criação de impostos nos Estados-membros. Imaginemos que a decisão passava no Tribunal de Justiça. Os tribunais nacionais não poderiam ter nada a dizer sobre essa usurpação ou abuso? Era o que mais faltava.
O tribunal alemão questionou se o programa de compra de activos ultrapassou ou não o perímetro de competências do BCE. Discordo da forma como fez a questão. Ao fazer uma análise relativa à proporcionalidade, às eventuais alternativas, aos efeitos secundários, entrou numa discussão sobre a oportunidade “política” do programa, que não é da sua esfera. É a mesma crítica que faço à jurisprudência do nosso Tribunal Constitucional sobre as medidas do tempo da troika. Já agora, é enternecedor ver como muitos dos que por cá então defenderam o tribunal português agora acusam o tribunal alemão de violar a separação de poderes.
Seja como for, os tribunais nacionais devem poder fazer a questão. Não para controlar directamente a actuação da UE, mas a dos órgãos nacionais que tenham aceitado, sem mandato dos cidadãos, aquela actuação. Caso contrário, um dia a UE será uma potência mais imperial do que democrática. Uma potência de rosto humano, bem-intencionada, é certo. Mas, ainda assim, uma potência imperial.