Opinião
Demitir de funções quem já se demitiu das suas funções
Em Portugal, a discussão sobre a possível demissão de um governante raramente é uma discussão sobre a salvaguarda da confiança dos cidadãos na dignidade das instituições.
Se Constança Urbano de Sousa e Azeredo Lopes se mantiverem nos lugares de ministros da Administração Interna e da Defesa, depois de Pedrógão, Tancos e da gestão que se seguiu em ambos os casos, a única mensagem de confiança que os portugueses receberão do Estado é a de que podem estar seguros de que um político jamais será demitido por razões políticas.
Talvez um político possa ser demitido por razões criminais - e aí, suspeito, só se for apanhado com uma arma fumegante na mão, sendo porventura necessário que essa arma tenha estado entre as que foram roubadas em Tancos. Agora, um político ser demitido por causa das funções em que o povo o investiu? É melhor não contarmos com isso.
Bem sei que, na experiência portuguesa, a demissão de um responsável, "para que a culpa não morra solteira", é por hábito o primeiro passo para que, de facto, a culpa morra solteira. Mas isso acontece porque em Portugal as demissões são um expediente para abreviar crises por mero descargo de consciência, não para salvaguardar a confiança dos cidadãos nas instituições.
Se queremos um Estado digno dessa confiança, convém que saibamos reconhecer os casos em que a manutenção de um determinado político em funções simboliza a incompetência, a negligência ou a falta de autoridade do Estado.
Por que motivo temos uma relação de tanto pudor com o tema das demissões de políticos? A minha tese é a de que, em Portugal, o exercício de um cargo de ministro ou secretário de Estado não é visto por ninguém com a naturalidade da prestação temporária de serviço público. Por cá trata-se de uma honra superior, quase de um título nobiliárquico, o cume de uma vida dedicada à construção de uma reputação. Basta ver a solenidade que devotamos ao panteão dos "ex-governantes". E é por isso que quase ninguém admite com facilidade demitir-se ou ser demitido. Uma demissão de funções públicas é um enxovalho pessoal irreparável, um desterro social.
Em Portugal, a discussão sobre a possível demissão de um governante raramente é uma discussão sobre a salvaguarda da confiança dos cidadãos na dignidade das instituições. O que é, quase sempre, é uma discussão tablóide, fulanizada, sobre a caída em desgraça do governante.
Se assim não fosse, poderíamos ter uma relação mais descomplexada e saudável com o tema. Não tem de ser a caída em desgraça de uma pessoa que determina a sua saída de um governo ou instituição. Muitas vezes o que impõe a demissão são razões relativamente inócuas para a reputação da pessoa demitida, como, por exemplo, a garantia de que os cidadãos podem acreditar que uma investigação oficial será realizada com transparência e sem conflitos de interesse.
Só este motivo objectivo seria suficiente para recomendar a demissão de Urbano de Sousa e Azeredo Lopes. Mas nos casos da tragédia de Pedrógão e do roubo de Tancos há mais razões do que essa: quer uma quer outro, perante as duas piores situações de falha de funcionamento corrente do Estado de que há memória, em matérias essenciais de soberania, foram incapazes de impor a sua autoridade, deixando que se instalasse um ambiente, sem fim à vista, de cacofonia, desorientação, desresponsabilização e desconfiança mútua entre instituições que deveriam trabalhar a uma só voz para restaurar a confiança dos portugueses no Estado.
Na prática, os ministros já se demitiram do exercício das suas funções. Falta só quem os demita no papel.
Advogado