Opinião
Boris e Corbyn: duas histórias, dois destinos
Se Boris Johnson cumprir o mandato de cinco anos, o Labour chegará a 2024 tendo tido apenas um líder eleito para primeiro-ministro nos últimos cinquenta anos. Um único, em meio século: Tony Blair (James Callaghan e Gordon Brown assumiram o cargo sem eleições gerais).
1. Paremos um minuto para pensar na história de dois séculos do Partido Conservador e Unionista do Reino Unido. É talvez o movimento com mais sucesso na história da democracia ocidental. Os Tories são uma grande amálgama de sensibilidades não socialistas, mas apesar dessa diversidade nunca deixaram de se preocupar mais em governar e dar utilidade ao voto popular do que em perder-se em discussões dogmáticas bizantinas sobre a própria identidade. Já foram mais assistencialistas ou liberais, mais patrióticos ou cosmopolitas, mais europeístas ou anti-federalistas. Atravessaram incólumes as modas dos autoritarismos e venceram o fascismo e o marxismo. São quase sempre o que têm de ser (ou o que tem de ser), segundo os princípios conservadores democráticos e aquilo que o mundo, em cada momento, exige desses princípios.
É também a isso que se deve a vitória de Boris Johnson na semana passada. Há meio ano os conservadores obtiveram 9% nas Europeias e foram dados como mortos por muita gente. Agora obtiveram 44% e uma maioria absolutíssima de deputados nas eleições para o parlamento de Westminster. Uma recuperação desta dimensão, em tão pouco tempo, só foi possível porque os Tories perceberam o sentimento do eleitorado como os outros não conseguiram. Perceberam que era preciso resolver rapidamente o Brexit, de acordo com a vontade expressa no referendo, mas também que o que determinou o resultado do referendo, bem ou mal, foi um forte sentimento de desigualdade regional e de cansaço com a austeridade da última década. Com o programa mais centrista desde há meio século, prometeram um investimento gigantesco no SNS e em obras públicas no Centro e Norte de Inglaterra, de onde varreram os Trabalhistas.
Se Boris consolidar o seu novo eleitorado, e ao mesmo tempo recuperar parte do voto urbano que lhe deu dois mandatos como Mayor de Londres, terá na História o lugar que deseja. Para isso, precisa acima de tudo de um Brexit sensato, respeitador da vocação liberal da cultura e da economia britânicas.
2. A vitória conservadora também se deve a Jeremy Corbyn. Corbyn lembra-me um dos meus livros políticos predilectos: "The Unfinished Revolution - How The Modernisers Saved The Labour Party", de Philip Gould. Gould, um dos principais estrategas do "New Labour" de Tony Blair, explica como os Trabalhistas renasceram das cinzas dos anos Thatcher e Major para definirem uma época na política britânica.
Nos anos 80, o Labour foi um partido traumatizado, que se sentia traído pelo próprio povo de que julgava ser o mais digno defensor. Gould contraria esta tese: não foi o povo que traiu o partido; foi o partido que traiu o povo. Porque o povo que atribuía as maiorias parlamentares não era já a velha classe operária industrial dos manuais, mas uma nova classe média jovem que se reconhecia na aspiração individualista dos discursos de Thatcher e desprezava o estatismo anacrónico, o sindicalismo radical e a terceira idade ideológica que os Trabalhistas representavam.
Gould, apesar de se definir como um racionalista hegeliano, conta que aprendeu com o filósofo conservador Michael Oakeshott os limites do racionalismo na actividade politica. Para Oakeshott, o bom político não é aquele que traça cenários macroeconómicos frios e soluções ideologicamente puras e coerentes; é aquele que compreende as "intimações" do povo. Ou seja, é aquele que intui as mudanças que o povo reclama através de indicadores mais ou menos subtis.
Um partido empenhado em perceber estas intimações não tem de mudar os seus princípios, mas tem de perceber de que modo esses princípios devem ser articulados e concretizados em cada circunstância histórica. Blair conseguiu-o; Corbyn, com o seu marxismo requentado, não o quis sequer tentar. E o resultado aí está.
Se Boris Johnson cumprir o mandato de cinco anos, o Labour chegará a 2024 tendo tido apenas um líder eleito para primeiro-ministro nos últimos cinquenta anos. Um único, em meio século: Tony Blair (James Callaghan e Gordon Brown assumiram o cargo sem eleições gerais). No entanto, a julgar pelos candidatos já anunciados à sucessão de Jeremy Corbyn, o partido quer continuar o caminho da purificação e do sectarismo. Sendo assim, boa sorte.
Advogado
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