Opinião
A "justiça fiscal" seria uma boa ideia
Para um sistema fiscal ser justo tem de ser igualitário. Todos devem contribuir para o financiamento do Estado na medida da sua capacidade. Para se saber quem deve contribuir, e com quanto, os impostos devem ter critérios de incidência o mais objectivos possível.
1. A melhor definição de "justiça fiscal" está na resposta que Gandhi ofereceu um dia a quem lhe perguntou o que pensava da civilização ocidental: "Seria uma boa ideia."
Em Portugal, a "justiça fiscal" não existe. Quando ela é invocada, é invariavelmente a propósito de um aspecto isolado do sistema, por regra como pretexto falso da criação ou aumento de impostos. Nunca se pergunta se, a cada alteração, o sistema fiscal fica de facto, no todo, mais justo. E nem vale a pena perguntar: raramente fica. O sistema fiscal português é um aglomerado informe de soluções avulsas, animado pelo princípio da captação de cada vez mais receita, indiferente aos danos que inflige à dignidade e liberdade das pessoas, ao planeamento da vida das famílias e das empresas, à mobilidade social, ao crescimento da economia e do emprego.
Numa circular sobre a elaboração do OE para 2017, o ministro das Finanças exigiu aos serviços da administração pública "medidas geradoras de novas receitas próprias". Ou seja, todos os ministérios, direcções-gerais, departamentos e demais recantos da burocracia que nos governa têm ordem expressa e urgente para darem asas à imaginação, a fim de encontrarem novas formas tributárias de nos virem ao bolso. É esta a "justiça fiscal" que sempre prevalece: a gula desesperada do Estado. Foi ela, aliás, que esteve na base das últimas alterações à fórmula de cálculo do IMI, por muito que o Governo venha atirar-nos areia para os olhos com a ideia da "justiça fiscal".
2. Para um sistema fiscal ser justo tem de ser igualitário. Todos devem contribuir para o financiamento do Estado na medida da sua capacidade. Para se saber quem deve contribuir, e com quanto, os impostos devem ter critérios de incidência o mais objectivos possível.
Num imposto como o IMI, essa objectividade é difícil, porque o valor dos imóveis é por natureza subjectivo. Por isso é que o legislador decidiu, como salvaguarda da igualdade, que para efeitos fiscais a avaliação dos imóveis ficaria essencialmente dependente de critérios objectivos (por exemplo, a localização, a área construída, a existência de elementos de conforto mais evidentes, como garagens, piscinas ou climatização central). Veja-se este excerto do preâmbulo do Código do IMI: "O sistema fiscal passa a ser dotado de um quadro legal de avaliações totalmente assente em factores objectivos, de grande simplicidade e coerência interna, e sem espaço para a subjectividade e discricionariedade do avaliador."
Isto não impede que se considerem alguns dados mais subjectivos, como a exposição solar ou as vistas, os critérios da polémica recente. Mas convém que a sua importância se mantenha bastante restrita. É que, como aqueles critérios, há todo um catálogo infindável de outros elementos subjectivos que podem ser invocados para aumentar ou reduzir o valor dos imóveis. E essa subjectividade potencia o tratamento desigual de situações substancialmente idênticas. Um avaliador tributário deve obediência ao rigor da lei, não ao optimismo oficioso de um vendedor de imóveis.
O Governo diz que não introduziu os critérios das vistas e da exposição solar, antes se limitou a aumentar a sua importância relativa. Certo. Mas fê-lo de modo significativo, não ignorando que nisso há um convite ao arbítrio e à manipulação das avaliações, que a administração não deixará de ver como um incentivo ao aumento de receita.
E que tal se os governos nos deixassem de enganar com a "justiça fiscal"? Eis outra boa ideia.
Advogado