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03 de Março de 2020 às 20:35

A nova esquerda Lux

O Luxemburgo é um território minúsculo, sem indústria, encravado entre os gigantes económicos europeus: se tivesse um sistema fiscal igual ao da Alemanha ou de França dificilmente teria os serviços públicos e os subsídios generosos que tem.

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Na semana passada, o Luxemburgo tornou-se o primeiro país do mundo a ter os transportes públicos inteiramente gratuitos. A notícia foi partilhada e celebrada por muitos esquerdistas portugueses como se ali, no grão-ducado, o comboio da História tivesse chegado a mais uma estação do percurso imparável rumo ao socialismo. Até o Esquerda.net, portal da propaganda do Bloco de Esquerda, espalhou a novidade com destaque e admiração.

É curioso: aqueles que agora aplaudem o Luxemburgo são os mesmos que a ele se referem vulgarmente como um “offshore”, praticante do “dumping fiscal” e da “concorrência desleal entre Estados”, só porque os pobres luxemburgueses acham que devem atrair receita fiscal com a promessa de não depenar quem gera essa receita fiscal.

Ainda há pouco mais de duas semanas, Marisa Matias escreveu no Diário de Notícias uma diatribe contra o Luxemburgo e outros alegados “offshores” da União Europeia, comparando-os às ilhas Caimão (o que, como a deputada bloquista seguramente saberá, é um absurdo, tendo em conta as regras de transparência da União).

Há aqui alguma contradição? Só da parte dos admiradores intermitentes do Luxemburgo. Da parte dos luxemburgueses não há. Certo, o Luxemburgo dá enormes benesses fiscais às empresas estrangeiras. Sucede que com isso consegue convencer as maiores empresas do mundo a lá colocarem boa parte dos seus lucros. O que o Luxemburgo cobra, da perspectiva destas empresas, é muito pouco. Mas é uma imensidão da perspectiva do próprio Luxemburgo. E é uma imensidão que, bem se vê, dá até para que toda a gente ande de transportes públicos sem ter de pagar bilhete. Algo que em países com sistemas fiscais mais vorazes (e alegadamente mais “justos”), como o nosso exemplar Portugal, nem nos melhores sonhos acontece.

Há boas lições a tirar desta notícia. A primeira é a de que qualquer governação depende menos da fidelidade absoluta a uma cartilha ideológica do que da atenção às circunstâncias e necessidades específicas de cada país.

Quem defende a fiscalidade liberal do Luxemburgo não tem de ficar incomodado com a suposta irresponsabilidade socialista dos transportes públicos gratuitos. Até porque essa gratuitidade é só aparente: os transportes públicos são pagos pelos utentes, através dos impostos. Por seu lado, quem não gosta da “agressividade” fiscal luxemburguesa também deveria compreender de uma vez por todas que não há nenhum Estado com serviços públicos ambiciosos sem uma economia que crie receitas fiscais à medida dessa ambição.

O Luxemburgo é um território minúsculo, sem indústria, encravado entre os gigantes económicos europeus: se tivesse um sistema fiscal igual ao da Alemanha ou de França dificilmente teria os serviços públicos e os subsídios generosos que tem.

A segunda lição é sobre os limites da chamada “harmonização fiscal”, uma das utopias da integração europeia. No melhor dos cenários, essa harmonização é uma ideia impraticável. No pior, é uma ideia perigosa.

É uma ideia impraticável porque não se vê como é que a União Europeia alguma vez conseguirá convencer países como o Luxemburgo, a Irlanda ou a Holanda a desistirem dos seus sistemas fiscais, em que assentam a competitividade, a atracção de riqueza e o financiamento dos seus sistemas de bem-estar.

 

Não há nenhum Estado com serviços públicos ambiciosos sem uma economia que crie receitas fiscais à medida dessa ambição.



E é uma ideia perigosa, especialmente para os países mais pobres, porque a “harmonização fiscal”, como todas as tentações uniformizadoras dentro da União, tende para o nivelamento por cima. Se os maiores países não conseguem combater a concorrência fiscal dos mais pequenos, então a solução é fazer com que todos tenham sistemas fiscais à grande e à francesa.

No Luxemburgo, a curto prazo isso significaria voltar a pagar bilhete para andar de transportes públicos. O que os contribuintes fariam com alegria, se isso lhes permitisse viajar dali para fora.

Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico


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