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[778.] O futuro explícito: Mercedes-Benz, Huawei

E lá voltamos ao futuro. A função da publicidade é atirar o consumidor para o futuro da compra, mas não parece necessário que esteja sempre a invocá-lo directamente - por já não saber o que dizer.

Um anúncio de Mercedes-Benz, associado por alguma razão a essa feira de banha da cobra do futuro chamada a Web Summit, dizia apenas em letras garrafais, sobre um modelo da marca, "Imagine future".

Não dizia em português, mas eu traduzo: "Imagine futuro." A frase é quase pleonástica, porque imaginar é já uma actividade mental que projecta o porvir. A formulação encontrada pelos publicitários é interessante no sentido em que, desmontada, pode significar "imagine o imaginário". Todavia, não foi essa a intenção da mensagem. Ao ilustrar o anúncio com um carro da marca, aquele slogan-ordem pretendeu dizer ao consumidor para engolir a já estafadíssima ideia de que "o futuro é hoje", uma frase que, em diversas variações, enche a publicidade actual. É falta de imaginação. Se a publicidade visa levar o consumidor a agir no seu futuro, comprando o produto, bastaria a promessa da felicidade e uma caracterização, mesmo que abstractizante, do produto, em vez de repetir "ad nauseam" a palavra futuro nos slogans.

Mas é o que sucede também num anúncio de telemóveis de Huawei (e da Meo). Em letras gigantes, o quê? "O futuro." A frase completa é "Huawei apresenta o futuro". Lá está, é uma variação de "o futuro é hoje". Tal como Mercedes-Benz, Huawei já produz o futuro, o que, preciso de repeti-lo, é uma bizarria. Se alguma coisa já se produz, essa coisa é passado e, vá lá, presente. Também esta marca se associa, mesmo que indirectamente, à Web Summit (e a campanha da Meo, referida no reclame), ilustrando o anúncio com uma imagem da robô Sophia com o modelo Mate 20 Pro na "mão". Não poderia haver pior maneira de associar o "futuro" à banha da cobra. É sabido que Sophia não é exactamente um robô, mas antes um boneco articulado sem autonomia, dependendo de instruções de humanos atrás da cortina. E, mesmo assim, falha, como se viu na Web Summit. Como brincadeira, prefiro os bonecos no braço de um ventríloquo. Tem mais graça e resulta de um verdadeiro talento. A Sophia é um boneco animado por efeitos audiovisuais e por trás da cortina, além de não ter a mínima piada e interesse.

Há, por isso, uma traição incompetente nestes anúncios, porque a falta de imaginação leva os publicitários a transformarem um futuro, que deveria estar implícito na mensagem, na própria mensagem. Prometer o futuro invocando-o, como nestes e tantos outros reclames, denuncia a publicidade como propaganda. Em vez de prometer sonhos, diz que promete sonhos. Em vez de promover o produto, referindo-se-lhe em primeiro lugar, promove a banha da cobra expressa pela invocação directa do futuro.

A propaganda está cada vez mais presente na comunicação. Os políticos, que sempre a utilizaram para prometer amanhãs que cantam, transformaram-na numa máquina profissional de enganar cidadãos. Antes reservada às campanhas eleitorais, a propaganda é hoje contínua, diária. Governos mentem quase hora a hora com promessas do que farão amanhã, sabendo que o não farão ou que o não farão amanhã. São protegidos por media incompetentes, que no geral ainda não se capacitaram de que qualquer dessas promessas deve ser de imediato sujeita a contraditório e, no mínimo, apresentada como promessa de propaganda. Desta forma, uma parte não negligenciável da informação jornalística acaba por ser um retransmissor de promessas de "futuro". A propaganda "científica" deste tipo teve origem, precisamente, na publicidade. Seria bom que os publicitários, para não se compararem a políticos que imitam as tácticas publicitárias, tivessem eles o profissionalismo, a coragem e a imaginação para não fazerem agora campanhas e anúncios que parecem mais feitos pelas agências de "comunicação" de políticos do que por agências de publicidade.

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