Opinião
[688.] Sofás Zone, Licor Beirão, Vodafone
Transformado o Natal numa feira, a família numa estrutura descartável e suplementar para o indivíduo e a amizade em "likes" e toques, a publicidade natalícia deriva sem se fixar demasiado em valores tradicionais.
"Vais esperar pelo Pai Natal? Espera sentado", diz um anúncio de Sofás Zone. Além de assentos a partir de €299, o reclame mostra um jovem adulto, com ar apatetado, de blazer e gravata, com um barrete do Pai Natal. O Natal resume-se aqui, como noutros anúncios, ao 13.º mês.
O humor também foi tentado na campanha de Licor Beirão. O título também começa com uma pergunta: "Preferias Beirão? Se preferias, vai a preferiabeirao.pt e troca os presentes que não precisares. Alguém vai agradecer." O site desenvolve a ideia: "Primeiro, recebes o presente que a tua tia te deu." No anúncio televisivo, é um roupão. "Fazes a cara que tens a fazer, agradeces e vens" ao site. Após o Natal, o observador propõe "a troca" do presente da "tia" a uma IPSS que, se o aceitar, lhe "dá" uma garrafa de Beirão "como agradecimento."
Complica-se a prática do dom: no Natal dá-se e recebe-se presentes, por vontade e não por obrigação; o presente não se pode recusar; "Faz-se a cara" que se tem de fazer na aceitação, porque o dom tem um valor de relação humana e não comercial; mas, como não se aprecia o presente, propõe-se a troca, dado que, sendo já fora da prática do dom, ele passa a ter valor comercial. A arte da campanha está em revalorizar humanamente o dom, simulando a ausência de comércio. O presente é enviado para uma IPSS, logo há um acto de caridade ou, como se diz hoje, de solidariedade. Todavia, o dador não se limita a dar, pois recebe em troca uma garrafa. Assim, o recebedor corresponde à prática do dom, mas numa troca encapotada. Primeiro, porque se é um dom, a retribuição não é obrigatória. Depois, porque neste caso… é. A IPSS pode rejeitar a oferta, o que não faz parte da prática do dom. Se aceitar, concretiza a troca comercial com a garrafa. Todavia, há um dom pelo caminho: alguém paga a garrafa que o doador recebe e não é a IPSS, é a marca. É esse o "espírito solidário" referido no site.
Como acontece amiúde, a prática do dom acaba por ser aqui bastante complexa, mas ela existe na recta final, pois há um dom às IPSS de presentes de Natal rejeitados. A complexidade está no facto de haver uma troca comercial entre o doador do presente de Natal rejeitado e a IPSS, mas esse presente ser transformado num dom por Licor Beirão, que assume o pagamento de um dos bens envolvidos na troca, a garrafa. E, por este meio, quem vende numa troca de géneros acaba por se transformar num doador vicário e, tal como a IPSS, num recebedor efectivo. Afinal de contas, quem oferece o roupão dado pela "tia" à IPSS é a empresa produtora de Licor Beirão.
Estranhamente, nesta complexidade, fica de fora a "tia", a dadora inicial sem a qual não haveria a troca comercial nem o dom. Quem havia de dizer que a "tia" oferecia uma garrafa de Licor Beirão ao "sobrinho"! Mal sabe ela… e é por ela não saber que ele "faz a cara que tem a fazer" quando recebe o roupão.
Para o humor funcionar, o presente inicial é de uma "tia", tradicional, para um "sobrinho", um jovem dos seus 20 anos, para quem o Natal não significa a mesma coisa. É a festa "obrigatória" da "família" em que pessoas noutros tempos próximas são hoje parentes sem laços habituais.
Para resolver a perda dos significados originais e anteriores do Natal, a Vodafone arranjou um slogan que poderia ser dito por um padre na homilia da Missa do Galo: "No Natal é o amor que nos une." Une-nos, a quem? Depende do que o observador quiser ler. Como por baixo do slogan está a frase "Oferta de 3 meses de Instagram, Facebook e Twitter", a união mencionada é entre a marca e quem comprar um dos seus smartphones. Compra-se um telemóvel com a possibilidade de mostrar e receber à distância fotos, mensagens e "likes". A esta troca comercial a Vodafone chama "amor". Dura três meses. Nada mau.