Opinião
[648.] Anúncios no intervalo do Super Bowl
Na antevéspera da final do futebol americano, o apresentador do "talk show" nocturno da CBS, Stephen Colbert, entrevistou um antigo publicitário e chamou ao evento "Super Bowl da publicidade", a super-taça da publicidade. E é.
O evento, este ano na 50.ª edição, é um dos principais rituais da nação americana. Como no resto do mundo, o desporto une, sem intervenção da política. A televisão, que é casada com o desporto, teve um papel fundamental na elevação do ritual à estratosfera da simbologia da nação. As equipas que jogam têm pouca importância. O que conta é o ritual que junta as pessoas numa festa em que a comunidade imaginada se vê a si mesma e se sabe reunida em frente dos televisores uma vez por ano. O ritual reforça a crença. E que crença é? Não só a da nação política, mas da nação do espectáculo e do consumo. O mundo, que não liga ao futebol americano, nem sabe que equipas jogaram e qual ganhou, mas conhece extractos das actuações musicais na abertura e no intervalo. E sabe que o intervalo adquiriu uma dimensão mítica do espectáculo e do consumo, que os anúncios passam em televisões de todo o mundo, em noticiários, e que se podem ver gratuitamente pela internet.
Cada passagem de um anúncio de 30 segundos no intervalo da Super Bowl custou cinco milhões de dólares. A lei da oferta e da procura tem destes absurdos. Todavia, o estatuto mítico destes anúncios especiais dá-lhes um lastro especial. Qualquer pessoa os pode ver na internet, em que os anunciantes não pagam para os divulgar. Eis um aparente paradoxo: paga-se milhões para que, depois, o anúncio possa ver-se pela internet sem investimento.
Um anúncio no intervalo transforma-se num acontecimento. É feito para aquele momento único - com a aura da singularidade e do consumo colectivo em simultâneo durante o ritual - mas também a pensar no visionamento em computadores, "laptops" e telemóveis. Um anúncio da Jeep foi constituído, na maior parte da sua duração, por fotografias de caras de pessoas - retratos - na sua posição canónica, vertical, deste modo deixando vazias (ou cheias a negro) as margens dos ecrãs horizontais, como os dos televisores. Os publicitários conseguiram deste modo respeitar a tradição milenar da representação vertical dos retratos e a nova forma preferencial de visualização nos telemóveis. Os publicitários aplicaram esse virtuosismo a uma narrativa estafada, mas inescapável: vender os objectos de consumo através de pessoas, das suas caras e narrativas bondosas de estilos de vida e sonhos de um vida melhor.
Um dos anúncios mais eficazes, mas insuportável, do intervalo do Super Bowl mostrava um indivíduo comendo Doritos enquanto a mulher fazia uma ecografia: quando mexia na embalagem, o feto, visto no ecrã da clínica, tentava apanhá-la. Adequada ao comportamento de milhões comendo aperitivos enquanto assistem ao próprio intervalo, a ideologia é sinistra: o americano já é consumidor - e consumista - antes de nascer, quer comer "junk food" ainda na barriga da mãe.
O que mais impressiona nos anúncios do intervalo do Super Bowl é, entretanto, a sua sensaboria e, em muitos deles, a falta de alguma qualidade, em especial de criar narrativas com uma certa lógica interna, mesmo que surrealista. Como é possível que os anunciantes se proponham pagar milhões de dólares por anúncios tão fracos? Quem sabe, talvez o peso mítico do evento impeça anunciantes e publicitários de agirem com razoabilidade. Querem fazer o melhor e fazem o pior. Têm de fazer um anúncio sem público-alvo, ou com um público-alvo que corresponde ao universo, toda a nação. Agradarão a nenhum público-alvo? Optam, quase todos, pelo humor - a ocasião é propícia -, mas quase nenhum tem verdadeira graça. São piadas, desenxabidas ou rebuscadas. Se os publicitários nos disserem que os seus anúncios são geniais, não liguemos: eles são publicitários.