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[543.] Expresso: "Esta colecção é sagrada"

O anúncio do semanário Expresso à sua iniciativa de oferta de seis livros sobre religiões do mundo é o mais recente numa linhagem de décadas que recorre à Última Ceia pintada por Leonardo da Vinci no refeitório do Convento de Santa Maria da Graça, em Milão.

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A pintura de 1495-8 é uma das obras mais aludidas, adaptadas, parodiadas e imitadas na história da arte, incluindo na publicidade. Os publicitários recorrem frequentemente a obras artísticas, para chamar a atenção, reforçar o prestígio do seu trabalho e dos produtos anunciados, permitir aos observadores o prazer da identificação da obra representada e para valorizar a dimensão estética do reclames, assim ocultando a sua natureza comercial.

No caso do anúncio do Expresso, a relação é mais próxima, dado que se trata de uma imagem religiosa e a colecção de livros é dedicada às principais religiões, sendo por isso uma colecção "sagrada", segundo a retórica do slogan. A paródia à Última Ceia de da Vinci visa, em primeiro lugar, chamar a atenção do observador. É possível supor que virtualmente todos os leitores do jornal conhecem a obra do artista italiano, pelo que de imediato o seu olhar é atraído, identificam a paródia e retiram prazer desse processo. O recurso é, pois, o mais simples possível. Já a concretização é de um simplismo atroz.

A Última Ceia é despojada do seu sentido religioso concreto, interessando apenas o valor icónico da obra de da Vinci, bem como a presença de Cristo e a alusão à religião em geral. Em vez dos 13 homens presentes no episódio histórico e na pintura, a publicidade recorre a seis, cada um deles representando uma religião (ou duas, no caso do confucionismo e do taoismo, bastantes diferentes, mas representadas aqui por uma espécie de Confúcio).

A imagem é tipo copy-paste. Como a pintura de da Vinci está muito danificada, os publicitários "melhoraram-na", como as últimas ceias que Umberto Eco visitou na Califórnia nos anos 70: "De São Francisco a Los Angeles tive a ventura de visitar sete reproduções em cera da Última Ceia de Leonardo", escreveu ele. Lá dentro, uma voz advertia que "o fresco original está hoje arruinado, quase invisível, incapaz de vos dar a emoção que receberam da cera a três dimensões, que é mais real e tem mais".

O anúncio no Expresso faz um zoom sobre o centro da pintura e substitui todos os elementos por novos, mais brilhantes, coloridos, simplificados. Em da Vinci, há "demasiados" pães em cima da mesa: toca de tirar alguns. Todos os adereços e o cenário foram pintados de novo por um Leonardo do Photoshop. O Cristo pintado por da Vinci foi substituído por uma mais bem dispostinho, pois no original, para azar dos publicitários, Jesus acaba de dizer aos apóstolos que um deles o trairá naquela noite, gravidade que não ficaria bem no anúncio. As vestes de Cristo também foram coloridas e as mãos substituídas — uma delas foi virada ao contrário com o Photoshop, para fazer de esquerda e direita, o que faz de Cristo um contorcionista. Num país maioritariamente cristão, o anúncio manteve, entretanto, a primazia visual de Cristo, o único com as mãos abertas sobre a mesa (os outros cinco homens não parecem muito interessados em partilhar a ceia).

No total são colocadas seis figuras — porque são seis livros. Poderiam ter posto sete figuras (acrescentando Lao Tzu), por serem sete religiões tratadas nos seis livros, mas isso seria demasiado complicado para o nosso Leonardo do Photoshop. E como queriam mesmo estragar a referência a da Vinci, com seis evitam a simetria do original — e a composição fica manca. Nem vale a pena mencionar a colagem das cabeças aos corpos das figuras, digna de figurar no top do site "photoshop disasters".

O anúncio não faz justiça aos livros anunciados; a promessa ao leitor de que verá "tudo com outra luz" não funcionou comigo, pois, à conta desta publicidade, fiquei a desconfiar, decerto injustamente, da luz que emanará dos livros.

eduardocintratorres@mail.com



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