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Stay close to common sense

A margem de manobra do Governo para corrigir a abordagem é diminuta, muitos cidadãos já criaram uma percepção negativa relativamente à aplicação.

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A aplicação StayAway Covid identifica automaticamente potenciais cadeias de contágio, sempre que um utilizador se identifique como infectado, sugerindo que os utilizadores cujos telemóveis estiveram numa proximidade de risco de contágio do telemóvel do utilizador infectado façam o teste covid, e possam permanecer em isolamento até terem a certeza de que não estão infectados.

Tal como as redes sociais, esta aplicação assenta no princípio de externalidade de rede, ou seja, quanto mais utilizadores, maior o benefício que cada utilizador retira da aplicação. Contudo, ao contrário do que sucede, por exemplo, com o Waze, uma aplicação que nos leva a evitar engarrafamentos nas deslocações de automóvel, no caso da StayAway Covid a tangibilidade do benefício é mais colectiva do que individual, sendo assim a percepção do benefício pessoal e o incentivo à sua utilização diminutos.

Para a aplicação ser útil e facilitar, e muito, o trabalho de bastidores levado a cabo pelas autoridades de saúde na identificação e acompanhamento de cadeias de contágio, esta carece de massa crítica no número de utilizadores, e estamos muito longe desse ponto. De referir que o número de downloads da aplicação não equivale ao número de utilizadores efectivos.

Razão por que o Governo avançou com uma proposta de obrigatoriedade na utilização da aplicação. Muito já foi dito e escrito sobre as questões sensíveis que esta proposta levanta, nomeadamente a questão da privacidade e da constitucionalidade, mas certamente os autores da proposta antecipavam esta discussão.

Ao avançar com esta proposta, o Governo foi inábil. O mesmo Estado que, no passado recente, para reduzir o peso da economia paralela na sociedade (um óbvio benefício colectivo), promoveu o concurso Factura da Sorte, com um sorteio semanal de automóveis, destinado a incentivar o pedido de factura por parte dos consumidores (aumentando assim a proposta de valor associado ao acto de pedido de factura, e gerando desta forma uma maior percepção de benefício individual), poderia ter tido a mesma abordagem no caso da aplicação StayAway Covid.

Com base num sorteio de automóveis ou qualquer outro bem, ou mesmo dinheiro, seria relativamente fácil programar a aplicação para gerar, semanalmente ou com qualquer outra periodicidade que tivesse o sorteio, um código em função do tempo de utilização da aplicação no telemóvel. Quanto mais tempo a aplicação fosse utilizada, mais hipóteses de ser sorteado o código gerado daria ao seu detentor. Apenas quem quisesse utilizaria a aplicação, mas não é difícil imaginar que haveria uma utilização disseminada e consentida, sem qualquer problema de privacidade ou constitucionalidade.

Sabendo que é importante alimentar correctamente uma criança, qualquer pai sabe que não deve simplesmente obrigá-la a comer a sopa, deve sim preparar a sopa que a criança gosta. Mas também é difícil convencer a criança a provar a sopa de que gosta, depois de ter sido obrigada a provar a sopa de que não gostava. É nesse ponto que nos encontramos, ou seja, a margem de manobra do Governo para corrigir a abordagem é diminuta, muitos cidadãos já criaram uma percepção negativa relativamente à aplicação. Mas é mesmo necessário que os cidadãos façam a sua parte para combater a pandemia, e instalar e utilizar a aplicação é mesmo o melhor que podem fazer.

O funcionamento da aplicação necessita que o bluetooth e os dados obtidos a partir da localização GPS e triangulação de sinais captados a partir das torres de telecomunicações dos operadores estejam ligados no smartphone. Estes dados estarão disponíveis para outras aplicações, e certamente aumentarão as receitas da Google e da Apple, que desta forma venderão mais publicidade de valor acrescentado às grandes corporações internacionais, passando os utilizadores a ter ofertas, nos emails e nas redes sociais, de promoções de última hora sempre que nos encontramos a menos de 50 metros de uma Zara, McDonald’s ou qualquer outra loja de uma cadeia internacional.

Deveríamos ter a capacidade de recolher estes dados das movimentações das pessoas de uma forma anonimizada e torná-los públicos, para que universidades, empresas e cidadãos possam aumentar o seu conhecimento sobre os padrões de mobilidade da sociedade. Seriam dados com uma fiabilidade incomparavelmente maior do que os obtidos por qualquer estudo de mobilidade realizado no passado, cuja preparação e execução levou muitos meses. Desta forma, um estudo de mobilidade, sobrepondo dados socioeconómicos às movimentações registadas pelos smartphones dos cidadãos, por um largo período de tempo (semanas), com uma amostra inimaginável antes, estaria ao nosso alcance.

Os dados obtidos permitiriam obter padrões de mobilidade que seriam muito úteis para melhorar o sistema de transportes públicos nas áreas metropolitanas. Serviriam para gerar negócios inovadores na área da mobilidade. Mas permitiriam também aferir a densidade de pessoas nos transportes públicos e compreender em que grau a utilização destes favorece o contágio. Em resumo, estes dados seriam demasiado valiosos para serem desperdiçados.

 

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