Opinião
Regresso às aulas
Para aplanar os picos de procura do Transporte Público nas horas de ponta, poderiam ser introduzidas regras no sentido de flexibilizar os horários de trabalho e de funcionamento das empresas e organismos públicos.
A ocupação nos transportes públicos (TP) e o risco associado de contágio de covid-19 têm sido muito debatidos nos últimos dias. Afirma o Governo que não há evidência de risco de contágio nos TP, mas o cidadão desconfia porque as aglomerações em lojas e em outros locais são desaconselhadas ou mesmo proibidas, e o vírus é o mesmo.
Por outro lado, os especialistas em epidemiologia já deixaram o alerta: no Outono, o risco de crescimento exponencial no número de infectados em zonas de elevada densidade (leia-se, áreas metropolitanas como as de Lisboa ou Porto) é elevado. Assim, o regresso às aulas, expressão cunhada para o retorno à vida normal depois das férias de Verão, assume este ano uma relevância acrescida. Como preparar a sociedade para este cenário, sabendo-se que, como o próprio primeiro-ministro já admitiu, a economia do país não aguenta outro confinamento?
Se tal cenário se concretizar, a ocupação no TP será mesmo motivo de preocupação porque o risco de contágio aumenta exponencialmente com o número de infectados. Nem o teletrabalho se afigura uma solução (o teletrabalho é exercido maioritariamente por trabalhadores que se deslocam em carro próprio), nem há muito a fazer do lado da oferta: não se consegue aprovisionar um número significativo de autocarros em semanas, não é possível construir novas linhas férreas ou aprovisionar material circulante em meses, assim como está fora de questão desenvolver e instalar em tempo útil um sistema tecnológico que, coordenando os modos de transporte de forma integrada, permita uma melhor resposta do sistema de TP à procura em cada momento.
Se pouco há a fazer do lado da oferta, muito pode ser feito do lado da procura para aplanar os picos das horas de ponta e assim minimizar o risco de contágio nos veículos, paragens, estações e interfaces do sistema de TP. Colocar a perspectiva na procura significa considerar que a incapacidade de reduzir o nível de ocupação no TP resulta, não da insuficiente frequência dos serviços de transporte, mas da necessidade de movimentação em simultâneo de um número excessivo de pessoas. Na realidade, os picos de procura na mobilidade existem porque o tecido económico está organizado para que os seus actores possam interagir entre si durante o período normal de trabalho e a esmagadora maioria dos trabalhadores inicia o seu dia laboral entre as 8h e as 9h30 e termina entre as 5h e as 18h30.
Para aplanar os picos de procura do TP nas horas de ponta, poderiam ser introduzidas regras no sentido de flexibilizar os horários de trabalho e de funcionamento das empresas e organismos públicos. As empresas e organismos públicos com um elevado número de trabalhadores poderiam funcionar com dois horários de trabalho, com metade dos trabalhadores a iniciar funções às 9h e a outra metade às 11h, ocorrendo o fim do dia laboral com o mesmo desfasamento. Ou qualquer outro horário que fosse da conveniência do trabalhador e do empregador, como veremos adiante, mas sempre tendo em vista o desejado impacte na mobilidade. Nas pequenas empresas e organismos públicos, ou em empresas cujo funcionamento exija a presença de todos os seus trabalhadores, por exemplo, para manuseamento de equipamento industrial, poderá sempre ser adoptada uma regra para que umas iniciem a sua actividade às 9h e outras às 11h. Poderia ser algo tão simples como o número NIPC ser par ou ímpar. Os horários das lojas poderiam seguir a mesma regra, ou poderiam ser totalmente flexibilizados, desde que não contribuíssem para o pico nas horas de ponta, sendo os mesmos consultados online.
Nas escolas, a lógica seria a mesma. Se tradicionalmente todas as turmas de uma escola começavam as suas aulas, por exemplo, às 8h30, este ano metade das turmas poderia manter este horário e a outra metade poderia começar às 10h30, sendo então aplanada a chegada simultânea de alunos e professores aos estabelecimentos de ensino, e também a utilização de TP para o efeito. A flexibilidade de horário de trabalho nas organizações permitiria que os pais optassem pelo horário que mais se conjugasse com o horário escolar dos filhos, ou, em casos que tal não fosse possível, esta conjugação poderia ser feita do lado da escola, ao ser escolhida a turma cujo horário mais se adequasse ao horário de trabalho dos pais.
Estas medidas poderiam trazer alguns inconvenientes para organizações e trabalhadores, professores, pais e alunos, mas estes são amplamente suplantados pelo benefício que resultaria deste esforço colectivo, tendo em vista uma melhor organização da sociedade para conter a pandemia. Neste esforço, teriam também que participar os operadores de transporte público, devidamente compensados pelo Estado pela perda de receitas. Trata-se também de uma oportunidade para o tecido económico desenvolver um novo paradigma na relação entre as entidades patronais e os seus trabalhadores, assente na flexibilidade de horários.
Especialista em transportes e mobilidade, Mestre em Transportes, Técnico Superior no Metropolitano de Lisboa
Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico