Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
03 de Março de 2016 às 21:20

Porque a crise não acaba mais?

Consciente de que a situação em que nos encontramos não é resolvida por nenhum passe de mágica, o dilema que Turner enuncia, "Entre a Dívida e o Diabo", diz tudo sobre a dificuldade da escolha.

  • ...

Quase dez anos depois dos primeiros sinais públicos de desarranjo do sistema financeiro internacional (agosto de 2007), aqui continuamos sob os efeitos de uma crise que se abateu primeiro forte nos bancos em 2008 e que depois passou para a dívida pública da Zona Euro, de onde não parece querer sair, arrastando os países do Sul da Europa para um aperto de austeridade que destruiu os sonhos de uma vida folgada no seio da União Europeia. Portugal, Espanha, Itália e sobretudo a Grécia vivem há mais de cinco anos num inferno que destruiu os seus sistemas financeiros e com ele as suas economias e as suas classes médias. Enquanto França tenta disfarçar que os seus desequilíbrios económicos e de falta de competitividade não são idênticos aos do Sul, a Alemanha, suportada pelo seu aparelho exportador num mercado europeu alargado à sua disposição, faz olimpicamente o papel de intocável mentor de uma ortodoxia financeira que curiosamente não praticou durante a maior parte do séc. XX.

 

Que Europa unida é esta do pós-crise onde os interesses nacionais são jogados permanentemente na praça pública e onde só os fortes têm ganho de causa?

 

Que crise é esta que não acaba mais? De onde e como veio esta onda negra que soterrou os dourados anos 1990?

 

Com o tempo que leva de crise, são inúmeras as explicações que foram sendo adiantadas, bem como os remédios sugeridos e praticados. Remédios que desde as encomendas do G20, aos trabalhos de Basileia, dos legisladores de Washington e de Bruxelas, que vão sempre no sentido de aumentar a regulamentação financeira e a repressão da supervisão, no princípio de que a banca e o sistema financeiro global foram os culpados da crise, porque inventaram produtos financeiros sem sentido e nalguns casos mesmo, praticando atos de pura burla. A teoria que vigora é de que com uma forte regulação e supervisão dos operadores financeiros, a crise não volta mais.

 

A pergunta é então porque depois de tanta nova regulamentação e todo o reforço de supervisores supranacionais, a crise não acaba mais? A resposta mais completa, lúcida e fundamentada vem no livro de Lord Adair Turner, sob o título de "Entre a Dívida e o Diabo".

 

Lord Turner é um banqueiro inglês, crítico do fogo de artifício financeiro que inundou o mundo nos últimos 25 anos e que foi chamado pelo Governo a dirigir o supervisor financeiro britânico, a FSA, uns dias depois da falência do Lehman, no outono de 2008, em plena dissolução do sistema financeiros inglês. Lord Turner admite publicamente o falhanço dos supervisores, nomeadamente da FSA, que vai restruturar profundamente dando origem a um novo organismo em 2013.

 

Lord Turner tinha sido entre 2002 e 2007 encarregado pelo Governo inglês de dirigir o Pensions Comittee, que preconizou uma profunda reforma do sistema de pensões, e que é conhecida como a reforma Turner. As medidas sugeridas por Turner estão agora em aplicação, no que é considerado um enorme sucesso ao conseguir promover uma inversão na tendência decrescente de criação de poupança para a reforma.

 

Quando sai da FSA, em 2013, Turner constata que ele próprio levou bastante tempo a compreender o que se tinha de facto passado no sistema financeiro internacional e que as razões que encontrou não eram partilhadas pela maioria dos observadores e comentadores. Tinha, portanto, de escrever um livro, alinhando o fruto da sua investigação e chamando a atenção de que o quadro geral que levou à crise não estava sequer a ser compreendido e muito menos acompanhado.

 

O livro "Between Debt and the Devil" é publicado pela Princeton no ano passado, estando a sua versão portuguesa a ser preparada pela Gradiva.

 

O livro é um cuidadoso e desapaixonado levantamento dos mecanismos que nos levaram à implosão em 2007 do sistema financeiro internacional. Desmistificando a suposta capacidade destruidora dos produtos financeiros derivados, ou derivados de derivados, Turner desvaloriza também o impacto que as conhecidas burlas tiveram na eclosão da Grande Crise. O verdadeiro problema, segundo Turner, foi que na sequência da desregulamentação da atividade financeira, foi possível aos operadores porem em funcionamento em quantidades nunca dantes imaginadas, a máquina da concessão de crédito, quer para financiar hipotecas sem racionalidade económica (o "subprime"), quer para operações de mercado, sem outra justificação económica que não fosse a geração de comissões para os originadores e intermediários. Sem qualquer impacto sobre a economia, o crédito e o crédito sobre o crédito apenas serviram para inflacionar os preços que seriam posteriormente o suporte de mais crédito, perpetuando o ciclo até à sua exaustão que veio a acontecer em 2007. 

 

O que Turner chama a atenção, é que o que foi feito em termos de regulação ou supervisão, ignora o quadro geral de funcionamento do sistema financeiro e tem apenas como efeito o estrangulamento do funcionamento dos bancos. Turner diz claramente que enquanto não for tomado em devida consideração a verdadeira génese do problema, enquanto não for encarada a solução da gigantesca montanha de dívida privada e da dívida soberana que veio salvar a dívida privada, não só não saímos do marasmo como ficamos à mercê de uma nova e destruidora vaga de desequilíbrios.

 

Não sendo apenas um exercício de crítica, o livro de Turner termina com um conjunto de propostas de políticas, que sendo polémicas, não deixam de ser, na opinião de Turner, inadiáveis. Consciente de que a situação em que nos encontramos não é resolvida por nenhum passe de mágica, o dilema que Turner enuncia, "Entre a Dívida e o Diabo", diz tudo sobre a dificuldade da escolha.

 

Leitura e reflexão obrigatória.

 

Presidente da APFIPP

 

Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio