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11 de Fevereiro de 2021 às 10:40

Ecologia, soberania e geopolítica

Neste momento, os principais fornecedores à Europa destas matérias-primas são a China com 60% e a Rússia com cerca de 10%. Não se desenvolvendo a extracção destes minérios na Europa (nomeadamente em Portugal), estaremos a trocar uma dependência externa por outra.

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O que está desenhado como política verde na Europa, e o que se espera que venha a acontecer com Biden nos EUA, permite antever uma profunda ruptura com o modelo económico dos últimos 100 anos. De facto, o que está em causa não é apenas a ecologia e as alterações climáticas, mas uma profunda revolução na economia, com o fim da dependência e subordinação relativamente a países que dormem sobre colchões de petróleo e de gás. Mas esta libertação verde não vai ser simples, pois vai trazer alterações radicais na geopolítica global e nos equilíbrios de forças entre regiões e países.

Não facilitando a verdadeira discussão, as dificuldades que condicionam o êxito da ambição verde nem sempre são devidamente esclarecidas e apreendidas. Por isso, é de saudar um recente contributo do grupo de reflexão Bruegel, que faz uma análise factual e desapaixonada do programa europeu e onde as questões e os riscos são alinhados de uma forma simples e clara. Desta análise, fica bem patente que as dificuldades que nos esperam não estarão apenas nos negacionistas das alterações climáticas, mas sobretudo no relacionamento, por um lado, com os países produtores de combustíveis fósseis e, por outro, com os dos metais ditos raros, utilizados nas novas tecnologias verdes. Algumas conclusões – que não dispensam a leitura do documento – podem ser desde logo ponderadas:

Neste momento, cerca de 3/4 da energia consumida na Europa tem origem em combustíveis fósseis (petróleo 35%, gás natural 24% e carvão 14%), enquanto as renováveis representam 14% e o nuclear 13%. O programa europeu prevê para 2030 uma redução para 50% dos combustíveis fósseis, e uma diminuição ainda mais acentuada entre 2030 e 2050, altura em que o petróleo será eliminado e o gás natural ficará nos 10%. É para o carvão que as quedas mais imediatas estão previstas, estimando-se um decrescimento de 71-77% já para 2030.

Quanto à origem da energia consumida na Europa, cerca de 30% do petróleo e 50% do gás vem da Rússia, enquanto a Noruega fornece perto de 10% do petróleo e 25% do gás. Nigéria, Cazaquistão, Iraque e Arábia Saudita contribuem, cada um, com cerca de 10% para o nosso consumo de petróleo. Da Argélia vem um pouco mais de 10% do gás natural consumido na Europa.

O documento Bruegel “As geopolíticas do Green Deal Europeu” chama a atenção para os impactos que extravasam em muitas fronteiras da Europa. É necessário ter presente o peso que têm as exportações de combustíveis no total das exportações de alguns países, bem como a importância do mercado europeu em certos produtores. É que os combustíveis fósseis representam cerca de 90% das exportações do Iraque, Líbia, Nigéria e Azerbaijão, de 80% no caso da Arábia Saudita, cerca de 70% no caso da Argélia, de 60% no Cazaquistão e de 50% na Noruega. Quanto à relevância do destino Europa nas exportações de combustíveis fósseis, ela é de 70% no Azerbaijão, 60% na Argélia, Líbia e Cazaquistão, cerca de 50% para a Noruega, cerca de 30% para a Nigéria, 20% no Iraque, mas apenas 10% no caso da Arábia Saudita. Para muito boa gente, o Green Deal europeu não poderá passar desapercebido.

Quando um empresário concebe um modelo de negócio que vai atingir de forma tão drástica os seus fornecedores tradicionais, pode contar com reacções bem adversas, que em determinadas situações, incluam mesmo o risco da própria vida. No caso do Green Deal da UE, ninguém pode menosprezar os riscos de desestabilização política, social e, por fim, militar para certas regiões, e as suas implicações na nossa segurança colectiva. A menos que se aceite uma posição cega de “Europa Primeiro” (que no caso das vacinas não correu nada bem), alguém vai ter de gerir este programa que, não tendo efeitos instantâneos, irá pressionar, inexoravelmente os preços, no sentido da baixa. E aqui a capacidade de sofrimento é muito desigual. Enquanto para a Arábia Saudita o break-even na produção de petróleo estará entre USD 10 e 20/barril, para a Rússia esse valor sobe para cerca de USD 50 e no caso da Nigéria para USD 80.

Mas nem só de poupanças nas importações trata o programa da Europa. O desenvolvimento de indústrias verdes vai implicar que o consumo de minerais e metais – ditos raros – aumente exponencialmente. Neste momento, os principais fornecedores à Europa destas matérias-primas são a China com 60% e a Rússia com cerca de 10%. Não se desenvolvendo a extracção destes minérios na Europa (nomeadamente em Portugal), estaremos a trocar uma dependência externa por outra. Este argumento – que é crítico para a nossa soberania – deveria estar presente quando se tenta impedir que avancem os projectos de extracção mineira em Trás-os-Montes.

Estamos assim perante desafios geopolíticos, de política interna e económicos, que não se podem menosprezar. E a forma como evoluírem as relações da Europa com os EUA, com a China e com a Rússia determinará o resultado final. Perante a dimensão do desafio, haverá quem ache que, no fim, seria melhor não fazer nada, mantendo a nossa dependência e menoridade face aos produtores de petróleo e gás natural. Afinal, já estamos habituados a assistir mudos e quedos às reuniões da OPEC. Ficaria é certo por resolver o tema das alterações climáticas, mas bastaria que alinhássemos com os que questionam a sua relevância, para esse tema deixar de ser um problema. Mas face a estes desafios, será mesmo concebível a inação? Parece difícil de acreditar, pois o susto provocado pelos incêndios na Califórnia, pelos furacões na costa leste dos EUA e pelas cheias, inundações e vendavais um pouco por todo o mundo já despertou o instinto de sobrevivência dos humanos, característica aliás básica para qualquer forma de vida.

Fica uma última questão. Será que esta Europa compósita e frágil, que depende de governos prisioneiros de agendas locais, tem arcaboiço para esta revolução em conjunto? O que se passa actualmente com a incapacidade de vacinação dos europeus em massa não é bom augúrio. Mas se uma andorinha não faz a Primavera, também um desastre não implica o condicionamento absoluto do futuro. A menos que se desista, o que jamais teria o perdão dos nossos filhos e dos seus descendentes. 

Ler o documento do Bruegel:

https://www.bruegel.org/wp-content/uploads/2021/02/PC-04-GrenDeal-2021-1.pdf

Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico

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