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José Veiga Sarmento - Economista 17 de Março de 2021 às 09:20

A crise de 1644 na China

Pelo que se vê hoje nas notícias da Bloomberg sobre a China – que vão desde as proibições de IPO às ordens para se proceder à desalavancagem – os Mandarins do séc. XXI não querem falhar desta vez.

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A História é sempre uma fonte fascinante de inspiração quando se quer ir um pouco mais longe na perceção do que está a acontecer ou mesmo tentar olhar para o futuro. No entanto, a História não tem poderes preditivos. Saber o que aconteceu e o que fizeram os nossos antepassados dá-nos ensinamentos preciosos sobre como funciona o comportamento humano. Mas o futuro depende de muitas coisas e o passado não é certamente o fator determinante.

Apesar desta reserva mental, a tentação de buscar inspiração aos sucessos e insucessos passados é irresistível. E no caso da China, a sua História é uma verdadeira fonte inesgotável. Uma História que vem desde o 2.º milénio antes de Cristo com a China Antiga da Dinastia Xia, até à China Imperial da Dinastia Han – contemporânea do Império Romano e equivalente em dimensão mas mais povoada uma vez que teria 57 milhões de habitantes – passando pela Dinastia Yuan fundada pelos conquistadores Mongóis em 1271 e que edificam a nova capital Pequim, a que se seguiu a Dinastia Ming em 1368 e que vai durar até 1644. É nesta altura que uma profunda crise financeira abre lugar ao caos que vai durar até à instalação da Dinastia Qing, fundada por Manchus, que governará a China por quase mais três séculos até ao advento da República em 1912.

Ora é precisamente a crise que põe fim à Dinastia Ming em 1644, que alimenta a curiosidade dos analistas financeiros, apostados em encontrar paralelos com o momento atual de sobreaquecimento da economia chinesa, com os riscos das bolhas de imobiliário e do crédito e com a dependência do comércio e sistema financeiro internacional.

A longa História do Império Chinês, fruto de muitas guerras e de importantes deslocações de povos, tem, pelo menos, duas referências permanentes: a existência de uma competente e poderosa administração pública e uma enorme capacidade produtiva e de exportação. Quanto ao significado da administração pública, é impossível não sermos admirativos do que se passava já no ano 1000. Na época em que as elites europeias se entretinham em torneios e em romances de cavalaria, o entusiasmo da juventude na China traduzia-se nas candidaturas para funcionários do Império – conhecidos por Mandarins – que, em grande número, acorriam todos os anos à capital, para tentar fazer valer as suas capacidades intelectuais e alcançar a prestigiosa função. Nessa época, dos 15 mil candidatos anuais, só cerca de 10% conseguiriam ser admitidos. E os 90% que falhavam acabariam marcados para o resto das suas vidas. Já a atividade manufatureira, nomeadamente com a porcelana, alimentava o comércio dos mercadores das rotas da seda e posteriormente dos marinheiros portugueses, espanhóis e holandeses, que dela fariam a sua riqueza, abastecendo os consumidores do Médio Oriente e da Europa. A título de curiosidade, a palavra porcelana terá sido cunhada por Marco Polo para descrever umas pequenas estátuas de cerâmica que lhe pareceram pequenos leitões (porcellini em italiano). A verdadeira explosão de produção e exportação de porcelanas ocorreria na Dinastia Yuan dos Mongóis que, sendo estrangeiros na China, introduziram o cobalto que trouxeram do Médio Oriente para dar a cor azul ao que passaria a ser conhecido como louça da China. Afinal, foram líderes estrangeiros, técnicas estrangeiras e mercados estrangeiros que constituíram a alavanca do poderio económico chinês já no séc. XIII.

Mas a presença exportadora global da China vai ser exponencialmente potenciada com a intervenção de Portugal e sobretudo com a prata espanhola. Sabemos que a descoberta da prata no séc. XVI, pelos espanhóis, na América do Sul, criou o suporte político dos Filipes na Europa, que vão somar a Espanha o Império Português e o Sacro-Império Germânico. Mas o que nem sempre valorizamos é o que aconteceu com o intenso movimento de prata espanhola, vinda diretamente via Pacífico, das minas da América do Sul para a China onde o seu valor, relativamente ao ouro, era muito maior do que na Europa. Para se ter uma ideia do que representou a criação monetária por parte de Espanha, veja-se que a produção de prata, só na montanha Potosi da Bolívia onde, a 3.700 m de altitude, viviam em 1610 cerca de 150 mil pessoas, passou de 148 kg em 1520 para 3.000 toneladas em 1590. Mudança verdadeiramente astronómica.

Do lado chinês, esta quantidade de metal e o efeito de arbitragem relativamente ao seu valor na Europa alavancou a oferta de produtos chineses, estimando-se que o crescimento das receitas das autoridades Ming tenha aumentado quatro vezes entre 1600 e 1643, sendo os recursos investidos numa série de grandes infraestruturas e reformas e num programa de estímulo ao comércio internacional. Este influxo de prata devido ao alto preço que lhe atribuíam os chineses acabou por desequilibrar todo o sistema, desvalorizando aquele metal precioso – cujo preço acabou por alinhar com o dos restantes mercados – mas inflacionando todos os preços das restantes mercadorias. Um movimento de sentido oposto vai ser inadvertidamente provocado por Filipe IV (o nosso Filipe III) ao cortar o fluxo de prata para a China, redirecionando-a para a Europa, para cobrir os gastos de Espanha com a guerra. A escassez da prata provoca a queda generalizada dos preços, deprimindo a economia chinesa, que deixa de funcionar. Esta montanha-russa financeira acabaria por condenar a China a um período de caos e de guerra civil que põe fim à Dinastia Ming. A situação só se irá normalizar anos depois com a nova liderança que veio da Manchúria e que reinou até ao séc. XX.

A fabulosa fábrica chinesa que inundou o mundo, no séc. XVII, com cerâmica, sedas, veludo, cetim, damasco e outros têxteis, ornamentos para a cama, reposteiros, cobertas, tapeçaria, toalhas de mesa, almofadas e tapetes, bacias de metal, chaleiras de bronze, panelas de ferro fundido, estanho, chumbo, salitre, pólvora e todo o tipo de contrafações, não resistiu aos desequilíbrios financeiros. Pelo que se vê hoje nas notícias da Bloomberg sobre a China – que vão desde as proibições de IPO às ordens para se proceder à desalavancagem – os Mandarins do séc. XXI não querem falhar desta vez. Embora o tsunami de 1644 tenha produzido ondas de choque planetárias, ninguém tem dúvidas de que, agora, o efeito seria bem maior.

 

 

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