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19 de Janeiro de 2021 às 18:58

A OPEP e a Autoridade da Concorrência

Será que temos salvação? O plano de recuperação económica da União Europeia passa por aqui. Uma nova economia pode nascer, deixando tranquilas as reservas de crude nas areias dos desertos e eliminando os tubos de escape.

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A vida tem mistérios insondáveis. Num mundo em que é suposto as regras comuns tenderem a garantir a justiça e a igualdade de tratamento, subsistem situações que contradizem o normal entendimento das coisas. Uma dessas incongruências gritantes é a dicotomia que existe entre as regras da sã concorrência e a existência de organizações como a OPEP. Damos todos por adquirido que, para defesa dos direitos dos consumidores, é necessário fazer respeitar as regras da concorrência e punir o conluio dos fornecedores de bens e serviços. Vemos a Autoridade da Concorrência a investigar e propor coimas para infracções que possam resultar em acordo de preços entre supermercados, seguradores ou empresas de telecomunicações. Da mesma forma, a Comissão Europeia enfrenta lóbis profissionais poderosos e não receia, se necessário, infligir-lhes pesadíssimas multas. Mas então por que razão é que Margarida Matos Rosa e a comissária Vestager se remetem ao silêncio quando um grupo de distintos senhores se reúne em Viena (agora em videochamada) para concertar a forma mais eficiente de espoliar os consumidores do mundo inteiro? É que as reuniões nem sequer são secretas e não é necessário ouvir denúncias ou fazer investigações. As discussões e os acordos são públicos e objecto de cobertura mediática global. Então em que ficamos? Dois pesos, duas medidas? É assim que funciona a ordem mundial? Apesar de instintivamente reconhecermos o porquê das diferenças, vale a pena uma pequena reflexão.

 

A OPEP foi fundada em 1960 pelo Iraque, Irão, Arábia Saudita, Koweit e Venezuela, com o objectivo assumido de coordenar a extracção e os fornecimentos de petróleo, aumentando as receitas dos produtores e diminuindo o poder das empresas ocidentais do sector. Clareza cristalina, portanto, sobre a natureza da instituição. Para os fundadores tratava-se da defesa legítima dos seus recursos naturais dos quais o mundo inteiro passou voluntariamente a depender. A questão que nos devemos colocar é como chegaram as potências mundiais a esta situação de dependência absolutamente humilhante? Como tudo se explica, é relevante rever o percurso, contando com o apoio de referências históricas consultadas, entre outras fontes, no livro "Rotas das Sedas" de Peter Frankopan.

 

O início do império global do petróleo acontece em 1908 com a descoberta da primeira jazida na Pérsia pela Companhia Anglo-Persa, uma empresa privada inglesa cujo fundador tinha obtido, em 1901, do Xá reinante "o privilégio exclusivo de procurar, obter, explorar, desenvolver, comercializar, transportar e vender gás natural, petróleo, betume e ozocerite em todo o Império Persa por um período de 60 anos". Esta descoberta vai servir para modernizar, ao substituir o carvão pelo petróleo, a já muito poderosa marinha inglesa que assim ganha em potência, autonomia e custo de operação. Uma verdadeira revolução. Por indicação de Churchill, a Companhia Anglo-Persa passará mesmo para o controlo do governo inglês em 1914 (nos anos 50 mudará o seu nome para British Petroleum). Também em 1914, por concessão do então Império Otomano, a exploração de petróleo na Mesopotâmia é concessionada à Companhia de Petróleo Turca cujo accionista maioritário era a mesmíssima Companhia Anglo-Persa, mas tendo como minoritários a Royal Dutch Shell, o Deutsche Bank e Calouste Gulbenkian, o genial negociador que tinha conseguido pôr as partes em acordo. Com o desmembramento do Império Otomano no fim da Primeira Guerra Mundial, a concessão é renovada em 1925 (nos anos 30 a empresa passará a chamar-se Companhia de Petróleos do Iraque). Com o ouro negro a jorrar, o mundo vai mudar e de que maneira.

 

Para assegurar o controlo das regiões produtoras no Médio Oriente, a Grã-Bretanha e a França acordam em 1916, em plena Primeira Guerra Mundial, na partilha do Império Otomano (acordo conhecido como Sykes-Picot), que cria para França dois países, o Líbano e a Síria, deixando para a Grã-Bretanha o que viria a ser o Iraque, a Palestina, o Koweit, a Arábia Saudita e o Bahrein, ou seja, as regiões potencialmente petrolíferas. Os franceses, gratos pela ajuda inglesa na guerra, concordaram. O monopólio inglês será mesmo assim incomodado em 1918, quando os americanos obtêm para uma empresa do universo Standard Oil, uma concessão por 50 anos para a exploração do petróleo no Norte da Pérsia. Dada a contribuição dos americanos para a vitória na Primeira Guerra Mundial, as indignações dos ingleses por esta intromissão não tiveram muito efeito. Um novo Tratado de Tordesilhas petrolífero, que assegurava o domínio absoluto da exploração de petróleo no Médio Oriente, passou então a vigorar entre ingleses e americanos. Este Tordesilhas foi revisto em 1944 na sequência da vitória americana na Segunda Guerra Mundial: o petróleo da Pérsia mantinha-se inglês, mas o do Iraque e do Koweit seria partilhado entre ingleses e americanos e o da Arábia Saudita ficava exclusivamente americano, entregue à California-Arabian Standard Oil, mais tarde designada Arabian American Oil, ou seja, ARAMCO. O novo mundo motorizado propulsaria os investimentos das companhias petrolíferas que assumiriam a liderança financeira e política do globo. Estamos, nesse momento, longe das preocupações ambientais e dos riscos de domínio por parte de países cujo nome e posição geográfica poucos conheciam.

 

Este absoluto controlo anglo-americano sobre o mercado do petróleo no Médio Oriente irá ser lentamente corroído pelos regimes políticos teoricamente independentes, mas de facto tutelados pelas companhias petrolíferas e governos ocidentais. Já em 1933, os ingleses conseguem fazer abortar uma tentativa do Xá da Pérsia para a cedência de 25% do capital da Companhia Anglo-Persa; esta será rebaptizada em 1935 de Companhia Anglo-Iraniana, já que o país passou a chamar-se Irão – que significa "terra de arianos" em persa – por simpatia com a moda ariana de Hitler. O recalcitrante Xá será mesmo apeado em 1941, sendo deposto a favor do seu filho Reza Pahlavi que governará até à Revolução Islâmica de 1979. Apesar do novo Xá, amigo e cooperante com o Ocidente, Mossaddeq, primeiro-ministro iraniano eleito, nacionaliza em 1951 a actividade petrolífera. Em consequência, a Inglaterra desdobra-se em ameaças e sanções que não resultam, pelo que vai ser necessário um golpe organizado em 1953 pela CIA e pelo antecessor do MI6, para levar à prisão e condenação à morte de Mossaddeq que, contudo, fica em prisão domiciliária até ao seu falecimento em 1967 (o seu ministro dos Negócios Estrangeiros será fuzilado). A paz ocidental volta ao mundo do petróleo, mas a partilha do bolo vai caindo inexoravelmente a favor dos governos (e em particular dos governantes) locais, que se aperfeiçoam no jogo da chantagem perpétua, com o apoio "desinteressado" da União Soviética que compete taco a taco com os Estados Unidos pela supremacia global. Os donos da droga negra que faz mexer o mundo sabem que o poder será agora deles.

 

A alteração radical de poderio económico global a favor do mundo do petróleo, que é quase exclusivamente um mundo islâmico, vai acontecer na sequência das guerras israelo-árabes de 1967 e 1973 em que Israel esmaga militarmente os agressores árabes, mas em que estes vão vender cara a derrota. Em meados dos anos 70, em menos de 10 anos e depois de sucessivos boicotes de fornecimento e de aumentos dos preços do crude, as receitas dos produtores de petróleo aumentam cerca de 30 vezes. A onda de nacionalismo árabe levará à nacionalização das empresas ocidentais: Iraque em 1972, Irão em 1973 e Arábia Saudita em 1976. O cobrador universal dos impostos mora agora nos desertos.

 

Não houve, nos últimos 500 anos, desde que Portugal e a Espanha deram novos mundos ao mundo e se apropriaram momentaneamente da riqueza global, nenhum outro acontecimento que tenha provocado uma tal redistribuição de poder, como o que aconteceu no séc. XX com o petróleo. Desta vez, os eleitos foram os nómadas dos desertos, que começaram por ver os estrangeiros a fazer furos na areia e depois tomaram conta do hardware e das contas bancárias. E nem sequer tiveram de se meter em pequenas caravelas e fazer-se ao mar desconhecido. O imposto cobrado aos consumidores de energia tornou-se num maná financeiro aparentemente ilimitado, que irá ser reciclado pelos países ocidentais em produtos de luxo, mas sobretudo com a venda milionária de armamento sofisticado. Esta riqueza súbita vai ter outras consequências não menos relevantes, em especial com a promoção do Islão radical saudita, que vai assumir contornos de um verdadeiro tsunami ideológico que se irá abater sobre todos os continentes.

 

Como é possível que o mundo inteiro se tenha deixado enredar numa armadilha de total dependência económica, financeira e moral? A resposta está à vista e não é a mais elogiosa para o mundo desenvolvido e sofisticado a que gostamos de dizer que pertencemos. As empresas petrolíferas americanas e europeias, que dominaram a vida política do Ocidente durante um século, construíram uma máquina extraordinária cujo controlo acabariam por perder para a OPEP. Podia ter sido diferente, certo? Pois podia, porque os carros eléctricos não surgiram com Elon Musk. O primeiro carro a bater o recorde dos 100 km/hora em 1899 era eléctrico... Além disso, já desde os anos 50 que o mundo científico sabe dos efeitos da poluição na saúde das pessoas e do planeta Terra.

 

Será que temos salvação? O plano de recuperação económica da União Europeia passa por aqui. Uma nova economia pode nascer, deixando tranquilas as reservas de crude nas areias dos desertos e eliminando os tubos de escape. Será que iremos viver numa sociedade que resulte da nossa ligação directa ao astro solar como já aconteceu com civilizações passadas? Mas do que vale mesmo a pena ter consciência é que o que está em causa não é só a ecologia. É sobretudo uma questão de soberania, tema tão em voga nestes tempos. Quanto à OPEP, a comissária Vestager poderia finalmente ilegalizá-la. A Autoridade da Concorrência Portuguesa naturalmente concordaria.

 

Economista

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