Opinião
Fiscalidade visionária
Em matéria de impostos, não faltam com certeza novidades ao Orçamento do Estado. Entre a eliminação do quociente conjugal, o tema quente do IVA nos pãezinhos de leite e a "perseguição fiscal" do grande automóvel, temos tido muito com que nos entreter.
A provar que o melhor fica sempre para o fim, no entanto, coube agora ao CDS-PP apresentar a mais arrojada proposta para enriquecer o orçamento. Em convenção nacional na cidade de Aveiro, o líder do partido despede-se anunciando que o CDS-PP irá propor que se junte à lei do orçamento uma cláusula a proibir a aplicação retroactiva do imposto sucessório, quando quer e como quer que este venha a ser introduzido.
Aveiro festejou a proposta como se festeja todo o anúncio visionário. O programa do Governo prevê a recuperação do imposto sucessório, em moldes e em tempo por definir. O receio do sucessório tem sido o bastante para muitos contribuintes acorrerem a doações em vida por forma a evitar a tributação quando a morte chegue. São estas doações em vida, feitas por antecipação, que o CDS-PP quer agora proteger, não vá o Governo lembrar-se de as fazer abranger também pelo novo imposto, tal como o secretário de Estado sugeriu, com uma ironia que escapou ao partido dos contribuintes.
A criação de um imposto sucessório que atingisse as doações em vida feitas nos meses anteriores à sua entrada em vigor seria coisa de tal modo violenta que provavelmente nem o Tribunal Constitucional lhe conseguiria ficar indiferente. Seria algo semelhante a fazer aplicar um aumento do IVA a vendas feitas em meses passados ou fazer aplicar um agravamento do imposto sobre veículos a automóveis já matriculados pelos compradores. Com a agravante de o sucessório incidir por regra sobre transmissões de maior valor e sobre transmissões que respeitam directamente à nossa vida familiar.
Em qualquer caso, fosse de recear a hipótese de um sucessório retroactivo, mal se vê que servisse aos contribuintes a cláusula de salvaguarda que o CDS-PP festejou em Aveiro. Existe uma contradição evidente em propor que uma lei ordinária proíba a aplicação retroactiva de outra lei ordinária, actos com o mesmo valor hierárquico. E existe um absurdo radical em pretender que uma lei vede a retroactividade de outra lei, futura e incerta, cuja introdução depende de uma ponderação política ainda em aberto.
É certo que o forte do CDS-PP tem estado nesta capacidade de projectar o futuro. Primeiro, com uma reforma do IRC que amarrava incondicionalmente as mãos dos governos que se lhe seguissem; depois, com uma reforma do IRS cujos custos só com o passar do tempo temos vindo a descobrir; enfim, com uma sobretaxa reembolsável até às eleições e que deixou de o ser em seguida, de modo presciente.
Ainda assim, a cláusula de salvaguarda com que o CDS-PP nos pretende agora proteger do sucessório talvez tenha sido um passo a mais nesta fiscalidade visionária. Ao fim do dia, até os grandes líderes têm os seus limites.
Professor da Universidade Católica Portuguesa