Opinião
Chega de queda Livre
Ventura sabe muito bem que os argumentos não têm, em si, muita importância, mas que a violência e a teatralidade com que são esgrimidos e repetidos até à exaustão é essencial para que sejam aceites.
Quem leu Yuval Harari conhece a sua explicação sobre como a nossa espécie, o Homo Sapiens, se impôs a todas as outras espécies e, por fim, influenciou o destino do nosso planeta. Claro que há outras explicações de como chegámos até aqui, nomeadamente as bíblicas, mas voltando a Harari, o que ele diz é que, ao contrário das outras espécies que nunca se conseguiram organizar em grandes grupos para lutar por objectivos comuns, o Homo Sapiens desenvolveu ferramentas únicas como a língua, a escrita, as regras de “governance” e de estruturas de poder. Ferramentas que, utilizadas em conjunto, permitiram que a nossa espécie edificasse pirâmides, se organizasse em impérios de muitos milhões de indivíduos e de quilómetros quadrados, desenvolvesse tecnologias com força para fazer frente a fenómenos naturais e a ataques de vírus e bactérias que regularmente nos dizimavam, construísse armas cuja letalidade é difícil imaginar ser ultrapassada e se lançasse à descoberta do espaço sideral que envolve este minúsculo grão de areia que é a Terra. Grande é, sem qualquer dúvida, a obra do Homo Sapiens.
Esta capacidade de sucesso inquestionável não é, no entanto, linear. Não avança em linha recta, perde-se por vezes em circuitos hiperbólicos e nalgumas situações, dirige mesmo toda a sua energia para a autodestruição. E isto porque, voltando a Harari, o Homo Sapiens não é propriamente uma entidade racional. O seu mecanismo de controlo, o cérebro, é mais sensível ao discurso, à narrativa, à história mirabolante e maravilhada, do que propriamente à análise dos factos. Assim foi, assim será.
A nossa civilização, que mesmo aos solavancos lá foi avançando e nos trouxe até esta sociedade de hipertecnologia, está recheada de momentos suicidários, em que o canto dos anjos do mal conduziu grupos de Homo Sapiens ao precipício do qual, é certo, têm arranjado sempre força e engenho para sair. Só no nosso século XX, a Humanidade lançou-se por duas vezes, e com intensidade frenética, em infernos globais totais. Foram inicialmente momentos de grande entusiasmo e de profunda devoção a causas, assentes basicamente no combustível que é o ódio aos outros, e que nos levaram à destruição total.
Temos hoje no planeta, aqui e ali, realidades em que a evidência destes momentos suicidários é patente. Em que o património da racionalidade acumulada ao longo dos séculos é deitado às urtigas. Realidades nas quais se aceita como boa a mentira que cega, mas que dá prazer partilhar e que confere um imaginário sentido de realização pessoal. É nestes momentos que abdicamos das características nobres e dos direitos (humanos) que reivindicamos para a nossa espécie.
Vemos a religião e a fé, a que se jura obediência total, serem utilizadas indiscriminadamente para a destruição do outro, mesmo sobre aqueles que podem ser os nossos parceiros e protectores. Em nome de um Deus, de uma Fé e de algumas histórias, vemos multidões de supostos Sapiens, dispostos a matar outros Sapiens ou a tornar-lhes a existência impossível. Que programa de vida celestial... Mete medo? Claro que mete medo.
Vemos nos Estados Unidos um Presidente, reconhecido pelo seu desprezo pela verdade e pelos factos, levar atrás de si em manada hipnotizada e submissa, cidadãos anónimos e ilustres senadores, unidos na fé primária que dispensa a caixa de ferramentas que nos faculta o património cultural da humanidade. Mete medo? Claro que mete medo.
Vemos também na Europa, sereias apelando ao regresso ao passado, ao regresso dos muros e das fronteiras. São verdadeiros pregadores votados ao convencimento dos Homo Sapiens das suas respectivas freguesias, que um mundo de felicidade os espera, se forem ateando fogueiras para queimar os outros. Mete medo? Claro que mete medo.
Vemos em Portugal, uma deputada do Livre, que é guineense, mas que também é portuguesa, apelar aos Portugueses para que devolvam aos que agora estão na Guiné, a propriedade de artefactos que já foram de Guineenses nos últimos cinco séculos e que hoje estão em mostra em museus públicos em Portugal, abertos a Portugueses, Guineenses e todos os demais.
Trata-se, certamente, de uma causa urgente e prioritária para ser debatida na casa que faz as nossas leis, pois foi assim que o André Ventura a apanhou, relançando-a em pleno voo, numa torrente narrativa em que argumentos que se entendem são misturados com bombas incendiárias que não têm outro sentido que não seja mobilizar os Sapiens para novos autos-de-fé. Acresce que Ventura sabe muito bem que os argumentos não têm, em si, muita importância, mas que a violência e a teatralidade com que são esgrimidos e repetidos até à exaustão é essencial para que sejam aceites. Já vimos isto variadas vezes no passado.
A estas forças da estupidez, que vão animando as visões do inferno que nos espera, juntam-se, numa dança sinistra, as personalidades que é suposto velarem pelo nosso bem comum, mas que agora argumentam que não se pode ir atrás dos criminosos porque a Constituição Portuguesa não o permite, ou aqueles que, tendo a responsabilidade da administração da justiça, confessam que afinal não há meios para o fazer. Que sociedade é a nossa, que tem hoje razões para não acreditar na bondade das regras a que está obrigada, sociedade na qual o crime não tem castigo, e em que o que tem castigo não se percebe se é crime? A indignação que é justificada face a este quadro, não sendo resolvida, abre naturalmente as grandes avenidas, ou seja, abre os canais de media aos Venturas que queiram aproveitar. É só preciso berrar alto, agitar os braços e contar algumas histórias. A conta vem depois.
É neste momento de alguma perplexidade, face aos riscos da loucura que nos pode levar ao precipício, que deve ser relembrado, com a serenidade possível, que vale a pena organizar os Homo Sapiens para objectivos que resultem em avanços civilizacionais. Que é urgente resolver os problemas. Resolver as iniquidades que impedem o colectivo de avançar. Criar uma sociedade aberta ao futuro. Para todos. Para nós e para os outros.
Porque para estupidez e irracionalidade, já chega.