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Subsídio de férias e férias de democracia

Os nossos macro-economistas de serviço deviam viver com micro-orçamentos familiares, para perceberem como há decisões que são insuportáveis no dia a dia das pessoas.

1. O episódio do não pagamento do subsídio de férias aos funcionários públicos é mau demais para ser varrido para debaixo do tapete da governação. Já nem uma enorme alcatifa chegaria. Porque não são meros ciscos da democracia. É um enorme resíduo que fica. Na verdade, se não é um problema de tesouraria e se havia uma decisão do Tribunal Constitucional para cumprir, não pagar é arbitrariedade e governação deletéria. 


2. Em primeiro lugar, porque não se dá nenhuma explicação válida e o exercício democrático do poder exige justificação pública do racional das decisões. O "posso, quero, mando, mas não digo porquê", é tributário de autocracias arrogantes. Pelo contrário, os Governos legítimos têm de saber legitimar o seu exercício discursivamente. Não se podem desprezar as razões. Não se podem silenciar motivos. Mesmo quando se trata apenas de erros ou incompetência. A democracia e a regulação da economia não podem fazer férias no fundamento das suas opções.

3. Em segundo lugar, porque não havendo explicação válida, a decisão significa uma intolerável caturrice e um desafiar do Tribunal Constitucional. Ora, um Governo não pode ficar refém das suas birras pueris e minar o equilíbrio de poderes institucionais, jogando ao gato e ao rato com as decisões constitucionais. É uma ratice. Aquece o caldeirão . Não me parece que isso corresponda ao regular funcionamento das instituições que o Presidente da República está incumbido de acautelar.

4. Em terceiro lugar, porque António Lobo Xavier não é porta voz do Governo e o aturado esforço para justificar o injustificável – alegando que os funcionários já terão recebido seis duodécimos do subsídio e não poderiam agora recebê-lo por inteiro – não resiste à mais elementar conta de subtrair, para que fosse pago o remanescente. Mas nem sequer isso atempadamente foi invocado. Aliás, parece que já ninguém sabe se o que foi pago foi o subsídio de Natal ou o de férias…

5. Em quarto lugar, porque o não pagamento do subsídio de férias representa um acto gratuito de nova agressão às famílias. As parcas remunerações da Função Pública precisam destes subsídios para efectuar pagamentos urgentes e já adiados, dívidas acumuladas, impostos vencidos e vincendos e outros luxos que integram o rol da sobrevivência digna e recta, como o sejam reunir algum dinheiro básico para poder emigrar, ou fazer os tratamentos médicos que o escasso rédito mensal vinha a protelar. Não acredito sequer que o Governo acredite que é utilizado ainda para férias nas Caraíbas.

6. Não pagar os subsídios de férias pode ser um "diktat" sem causa das finanças, mas é ainda uma burrice económica, no que significa de mais retracção da despesa sazonal tão necessária para a sobrevivência de pequenas empresas e serviços, que dependem do Verão para se equilibrar. Dizem as vozes encartadas de alguns economistas, que seria marginal o efeito dessa despesa na economia. Pois será. Mas os nossos macro-economistas de serviço deviam viver com micro- orçamentos familiares, para perceberem como há decisões que são insuportáveis no dia a dia das pessoas.

7. Sobra a já mais sofisticada tese, alicerçada em conjecturas ou fontes muito, mas muito privilegiadas, de que a coisa seria demandada em nome do respeito da folha de "excel" negociada com a troika para cada trimestre: pagar implicaria fugir desse colete de forças do défice trimestral aceitável. Mas isto, além, de não fazer o menor sentido, do ponto de vista das metas comprometidas numa base anual, revelaria até que ponto o Governo se ajoelha perante os nossos "protectores", não se coibindo de fustigar as famílias e de mandar às malvas o respeito devido ao Tribunal Constitucional, apenas para exibir a conformidade com um quadro de monitorização cautelar.

8. Tudo mau, tudo grave, tudo desnecessário. Perante um tal virtuosismo da asneira, perante uma tão insolente medida de esbulho estatal das economias domésticas, o Senhor Presidente da República, de quem se poderia esperar que travasse os desmandos, as imponderações ou os amuos governativos, optou por se demitir de novo dessa responsabilidade: qual "Speedy Gonzalez das promulgações", preferiu ser mera caixa-postal em correio azul e diligentemente remeter para publicação, "en toute vitesse", a enigmática medida. Com tamanha velocidade, o Presidente estatelou-se de novo.

9. Nada mais eloquente para assinalar dois anos de governo do que rematar com uma decisão deste calibre, verdadeiro paroxismo de uma orientação política que revela do fanatismo mais serôdio (o ataque às funções públicas) e de uma desorientação na acção , que denota a falta das mais elementares competências políticas.

10. Numa democracia que se preze, os governos têm de justificar cada uma das suas decisões. Não há férias explicativas. Numa democracia madura, o Presidente tem o dever de exigir aos governos que nos dêem o subsídio do fundamentar. E quando nem uma coisa nem outra acontecem, o povo tem o direito de defender a democracia.

Depois surpreendemo-nos com Brasis e Turquias…

Docente da Faculdade de Direito de Lisboa

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