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O efeito útil da lei sobre a limitação de mandatos autárquicos

O TC já mostrou ser capaz de jurisprudência consistente e criativa, mesmo em matérias de grande sensibilidade política. O que irá prevalecer entre os juízes: um positivismo defensivo, prisioneiro de uma redacção lacunosa, ou uma teleologia mais construtiva para todo o sistema eleitoral?

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1. A lei sobre a limitação dos mandatos autárquicos é um dos mais eloquentes exemplos do que o Parlamento não deve fazer: primeiro, aprovou uma lei manifestamente dúbia, tecnicamente falhada e politicamente "ad hominem". Depois, obstinou-se na cobardia política de a não corrigir, lavando as mãos no alguidar dos calculismos partidários mais miudinhos. Pelo meio desprestigiou-se mais o legislador, potenciou-se a politização dos tribunais comuns e degradou-se o processo eleitoral autárquico. Tudo lamentável. Tudo evitável. 


2. O Tribunal Constitucional (TC) vai agora ser chamado a pronunciar-se. Já se discorreu sobre o sentido histórico, o sentido literal e o sentido constitucional da controversa lei, mas pouco sobre o que realmente deve prevalecer, que é o seu sentido útil. Na verdade, pouco importa o que terá sido a vontade do legislador quando o próprio se demitiu de a clarificar. Pouco vale a letra da lei, ambígua como é e corrigida como foi na publicação... E quanto à sua constitucionalidade, é sabido que esta lei vai ser apreciada pelo TC em sede de contencioso eleitoral, não de fiscalização de constitucionalidade.

3. Ainda que assim não fosse, o princípio da limitação de mandatos é constitucional e o âmbito dessa limitação e a interpretação restritiva que deva fazer-se em matéria de direitos e liberdades, não poderia deixar de ser valorada à luz de outros valores constitucionais relevantes. A democracia não se alimenta de direitos abstractos. O direito de alguém ser eleito, abstractamente enunciado, é diferente do direito a ser eleito para um quarto mandato no Município vizinho. Pode e deve haver limites saudáveis à capacidade eleitoral passiva.

4. Nesse sentido, vale a pena notar que uma lei que, de forma explícita e clara, estipulasse a inelegibilidade em todo o território nacional, durante um mandato ou dois, dos autarcas com três mandatos consecutivos, seria certamente constitucional: a limitação seria adequada e não excessiva. Será que uma lei dúbia tem de conduzir a resultados contrários? O princípio da interpretação restritiva em matéria de restrição de direitos não é o preponderante neste processo eleitoral, como Paulo Rangel ainda recentemente lembrou.

5. A limitação de mandatos em geral fundamenta-se em razões negativas e positivas. Negativas, porque as democracias se querem defender dos vícios do poder e presumem que a longevidade nos cargos executivos pode ser fonte de promiscuidades, compadrios, nepotismos, desvios de poder, favorecimentos, redes fechadas de interesses, etc. É uma presunção pouco simpática para autarcas impolutos. Mas é uma prevenção contra as excepções daninhas.

6. Positivas, porque a democracia considera importante a rotatividade e a renovação dos cidadãos nos cargos electivos e executivos, como forma de exercício de uma cidadania amadurecida, capaz de gerar políticos novos, novas oportunidades e novas dinâmicas pessoais e políticas. Uma democracia de iguais, não uma democracia de caudilhos.

7. A questão está, então, em saber se estas razões militam a favor do efeito intra-municipal da limitação de mandatos ou se, pelo contrário elas são válidas para todo o território nacional.

Vejamos as razões positivas. A Democracia local não precisa de autarcas profissionais. A democracia não precisa de autarcas export/import, sem outra alma que não seja a do poder pessoal. A democracia deve propiciar igualdade de circunstâncias a todos os cidadãos que se queiram fazer eleger. Ora, a notoriedade adquirida por alguém que cumpriu três mandatos, coloca-o em situação privilegiada. O aparecimento de novos agentes políticos e a sua renovação fica mais limitado.

8. As razões negativas são ainda mais impressivas. Importa sublinhar que esta lei é tão cómica e absurda que, por omissão, permite que o Presidente actual se candidate em número dois para um quarto mandato consecutivo no mesmo Município. E permite, igualmente, que um Presidente de Câmara com três mandatos se candidate a Presidente da Assembleia Municipal… Ou seja, esta lei é um queijo suíço: veda o lugar de Presidente em nome do combate à perpetuação das influências nefastas e abre buracos por onde essas influências se mantêm…

9. Ora , se além disso, ainda for possível a um Presidente "tripetente", apresentar-se a sufrágio no Munícipio vizinho, o objectivo da lei é claramente parodiado. Parodiado no próprio município, através de "testas de ferro" que se candidatam a Presidente. Parodiado nos Munícipios vizinhos, através da manutenção ou, até, do reforço das ligações perigosas: os prestadores de serviços são os mesmos, os empreiteiros são os mesmos, a teia de influência mantém-se, o risco de favorecimento persiste.

10. Esta lei, tal como está redigida é, pois, uma lei inútil. O TC, para a transformar em lei útil, tem, agora, a ingrata função de a interpretar de acordo com canônes hermenêuticos clássicos e numa jurisprudência assumidamente teleológica: reconstruindo o seu sentido e finalidade, objectiva e não historicistamente, fixando-lhe um alcance que encontre ainda algum apoio na sua letra, mas que seja consequente com a "ratio" da limitação de mandatos.

11. Esse sentido deve ser o da extraterritorialidade da limitação de mandatos e o da inelegibilidade total para cargos executivos em autarquias, durante, pelo menos, um mandato. Um Presidente cessante com três mandatos consecutivos não deve poder assumir qualquer cargo executivo em qualquer autarquia. É essa amplitude material e territorial (com um limite temporal de quatro anos) que confere à "ratio" da limitação de mandatos o seu efeito útil.

12. O TC já mostrou ser capaz de jurisprudência consistente e criativa, mesmo em matérias de grande sensibilidade política. O que irá prevalecer entre os juízes: um positivismo defensivo, prisioneiro de uma redacção lacunosa, ou uma teleologia mais construtiva para todo o sistema eleitoral?

Docente da Faculdade de Direito de Lisboa

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