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Os efeitos secundários da política do BCE: a visão de três analistas

O Negócios questionou três analistas sobre os efeitos secundários da política monetária não convencional do Banco Central Europeu (BCE).

Reuters
24 de Outubro de 2019 às 11:30
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Há prós e contras na política monetária não convencional - juros negativos e compra de ativos, por exemplo - que o Banco Central Europeu (BCE) tem implementado nos últimos anos e prepara-se para reforçar a partir de novembro. O Negócios questionou três analistas sobre os efeitos secundários dessas medidas. 

O principal efeito secundário referido nas análises (em alertas do FMI, por exemplo) é a criação de bolhas nos mercados financeiros, imobiliário, etc. É possível dizer que este risco já é uma realidade na Zona Euro/Portugal? Ou as medidas macroprudenciais do BCE "esvaziam" o risco de bolhas? 
Filipe Silva, Diretor de Gestão de Ativos do Banco Carregosa: A atuação do BCE no mercado de dívida através dos planos de compra de ativos, trouxe para o mercado um comprador que no passado não existia e que acaba por ter um grande impacto nos prémios de risco que cada emitente de dívida paga. Se aliarmos a isto uma descida nas taxas de juro, temos então a combinação perfeita para uma subida do preço das obrigações. Este movimento leva a que os investidores procurem alternativas face aos investimentos que detinham no passado. Compram dívida com risco e maturidades mais elevadas, ações, imobiliário (que tende a ser menos líquido), bem como outros ativos. O efeito que temos visto tanto nos mercados financeiros, como no imobiliário, tem sido de valorização, que acabam por ser uma consequência destas medidas e que têm permitido a recuperação económica.

Já as medidas macroprudenciais do BCE visam ajudar a reduzir riscos sistémicos no setor financeiro. Desse prisma parece-me que neste momento todo o sistema financeiro está a caminhar para uma solidez muito maior do que a que detinha no passado, não entanto, não me parece que com isto se elimine o risco de bolhas, mas sim se atenue os efeitos da mesma. Se estaremos perante uma "bolha"… só o futuro o dirá. O mais importante é tentar perceber de que forma é que as decisões que os vários Bancos Centrais tomam, e que provocam impactos nos ativos onde estamos investidos. Percorremos um longo caminho para chegar a taxas de juro negativas e o mais certo é termos um processo semelhante para voltarmos a ter taxas de juro positivas e se este ajustamento for feito de forma gradual, então as possíveis "bolhas" poderão esvaziar-se sem que tenham no mercado o impacto que tantos alertam.

Eric Dor, professor e diretor dos estudos económicos da escola francesa IESEG School of Management: Há obviamente uma bolha artificial no mercado das obrigações. Uma vez que os investidores estão à procura de remuneração, até o preço das obrigações emitidas por países ou empresas mais arricadas tem sido puxados para cima por um procura forte e os juros têm descido. Parece que há bolhas no mercado imobiliário em cidades ou regiões específicas da Zona Euro, em particular na Alemanha. 

Filipe Garcia, economista da IMF: Não há uma definição exata de ‘bolha’, mas normalmente estaríamos a falar de algumas características como a compra dos ativos apenas para revenda rápida a um preço mais alto, a utilização intensiva de crédito ou mecanismos de crédito para a aquisição e o total descolar do preço face ao racional económico. Nesse sentido, o mercado onde poderemos estar com uma situação que mais se aproxima de uma bolha – mas não estou certo de que seja – é o mercado obrigacionista no qual a política monetária criou as condições para preços que desafiam a teoria económica e em que os agentes compram os títulos muitas vezes com a perspetiva de os venderem a seguir, sem ter em conta o rendimento implícito. Mas há também muitos agentes que são forçados a comprar a estes altos preços, pelo que não tem todas as características de uma bolha.
 
No imobiliário, não creio que estejamos perante bolhas, desde logo porque muitas das aquisições são feitas sem recurso a crédito. Por outro lado, muitas das aquisições têm como objetivo que os imóveis sejam ativos de rendimento e não tanto para venda imediata. Estamos perante uma alta de preços, não há dúvida, e que tem muito a ver com a falta de alternativas para investir, com o crescimento do turismo, com imigração e investimento estrangeiro e, claro, com uma atratividade do mercado que faz com que muitos queiram estar presentes, mas não me parece uma bolha.
 
A meu ver, os maiores efeitos secundários e riscos inerentes à atual política monetária passam desde logo precisamente pela atual margem de manobra e eficácia marginal de novas decisões do Banco Central – ou seja, a política monetária tem vindo a esgotar-se. Não parece haver como atuar a partir daqui sem recorrer a soluções tão criativas como arriscadas. O outro risco é o que chamo de "vício de juros baixos". A economia, incluindo os governos, habituaram-se rapidamente aos juros baixos e ao crédito fácil e não se vê como será possível voltar a "colocar a pasta dos dentes dentro do tubo". Não parece ser possível voltar à situação de juros pré-crise sem causar, no mínimo, uma recessão.

A crítica de países como a Alemanha e a Holanda é que a política de juros negativos está a prejudicar principalmente quem poupa e a beneficiar quem está endividado. O BCE contesta, diz que criou milhões de empregos e que por isso o rendimento de quem poupa também aumentou. Este efeito secundário é um mal menor face à alternativa de manter os juros em níveis mais elevados?

 
Filipe Silva: Nesta altura eu diria que sim, as taxas de juro negativas acabam por ser uma "reestruturação de dívida" sem que existam perdas para os investidores, pois apesar das economias mais endividadas terem conseguido baixar de forma substancial o custo que têm pelo serviço da sua dívida, precisam de um tempo muito longo para que esse efeito permita reduzir o montante da sua dívida e não voltem a ser um problema num cenário de subida de taxas de juro. Isto acabou por trazer confiança que numa fase inicial se fez sentir no mercado financeiro, mas que depois passou para a economia real, fomentando o investimento e levando a uma redução das taxas de desemprego.

Apesar das vozes contestatárias da Alemanha, Holanda bem como de outros países, todos acabam por sair beneficiados. No entanto, é preciso garantir que as economias mais fragilizadas façam as reformas estruturais e necessárias para não voltarem a ter os mesmos problemas que tiveram no passado.


Eric Dor: É muito complicado calcular a contribuição de cada fator na recuperação e no número de empregos criados. A política monetária contribuiu certamente para o crescimento do emprego, mas o mercado de trabalho também foi favorecido por outro fatores, particularmente o ambiente internacional. Também é surpreendente observar que a estagnação dos empréstimos bancários no setor privado em Espanha e Itália, apesar de muitos anos de política monetária ultra acomodatícia. 

O problema é que os juros negativos ou baixos podem tornar-se contraprodutivos face ao objetivo que supostamente querem atingir. Supostamente o objetivo é aumentar o crédito bancário, de forma a subir a procura global. Mas muitas pessoas têm uma meta de um certo montante de poupanças acumuladas num certo horizonte de tempo, por exemplo para quando se reformarem. Se a remuneração das poupanças é muito baixa, essas pessoas são levados a aumentar a sua taxa de poupança para atingirem o seu objetivo. É isso que se observa na Alemanha. Os juros negativos ou muitos baixos podem então deprimir o consumo em vez de o impulsionar. 

Em muitos países como a Holanda e a Alemanha, as pensões pertencem parcialmente a um sistema de capitalização em vez de um esquema de distribuição. Os juros negativos ou muito baixos baixam o rendimento dos ativos desses fundos de pensões. O resultado é que as pensões podem diminuir, o que é um grande problema social.

Filipe Garcia: É verdade que os aforradores estão a ser prejudicados, nomeadamente os que privilegiam aplicações de risco baixo. Isto porque quem tem aplicado em outros mercados – obrigações, ações, imobiliário - até tem tido em muitos casos rentabilidades mais interessantes. Por outro lado, quem se endividou realmente está a beneficiar de juros muito baixos, mas não tem tido a ajuda da inflação para pagar as suas dívidas.

Eu tenderia a concordar com o BCE numa perspetiva de curto prazo – a injeção monetária tem permitido, para já, melhores condições para a generalidade das pessoas. No entanto há dois aspetos a ter em conta: em primeiro lugar, estas políticas comportam riscos de habituação e riscos de longo prazo e, em segundo lugar, há um "efeito Cantillon" decorrente desta política monetária no sentido em que os efeitos não são sentidos da mesma forma por todos os participantes. O melhor exemplo está nas rendas das casas, mas há outros.
 
A banca europeia queixa-se de que as margens de lucro estão esmagadas. O próprio BCE reconhece isso, vendo isso como um risco para a transmissão da política monetária no sentido de aumentar o montante de crédito concedido. O tiering vai resolver em parte essa questão ou é um efeito secundário que se vai manter?
 
Filipe Silva: É verdade que o sistema financeiro tem tido margens financeiras muito apertadas, as taxas de juro negativas têm vindo a fazer com que se tenha de subir na escala de risco para se conseguir obter um retorno mais elevado. Esta escalada acaba por ter de ser feita por todo o tipo de investidores, os bancos não são indiferentes e isso levou a que aumentassem o crédito concedido. No entanto dadas as condições regulatórias atuais espera-se que exista um escrutínio maior nas operações que são realizadas. O tiering irá ajudar o sistema financeiro, mas não é a solução para o problema, mas apenas uma forma de alivar a margem financeira. O ideal seria uma normalização das taxas de juro, o que deve ainda demorar…

Eric Dor: De facto a política monetária pode tornar-se contraprodutiva e deprimir os empréstimos bancários em vez de os aumentar. Os juros negativos ou baixos baixam os lucros dos bancos e, por isso, diminuem a sua acumulação endógena de capital. Para conseguirem preencher os requesitos prudenciais, os bancos podem reagir com a diminuição dos ativos com maior risco e, assim, diminuir a oferta de empréstimos. O sistema de tiering resolve este assunto parcialmente, mas por outro lado a taxa de juro negativa foi diminuída. Assim, o ganho para os bancos do centro da Zona Euro, onde o excesso de liquidez está concentrada, é limitado. Além disso, o relançamento do QE [Quantitative Easing], com a compra de ativos pelos bancos centrais nacionais, vai aumentar mecanicamente o excesso de liquidez dos bancos. Isso vai, de forma progressiva, diminuir o ganho do sistema de escalonamento.


Filipe Garcia: A isenção de pagamento de 0,5% em depósitos até 6x os montantes das reservas obrigatórias ajuda os bancos de forma significativa e retira a pressão de eles próprios aplicarem taxas negativas em grande parte dos seus depósitos. Os bancos convivem com dificuldade num ambiente de taxas muito baixas, até porque deparam-se com alguma assimetria: não podem cobrar juros negativos, mas incorporam as Euribor negativas nos créditos indexados. A banca enfrenta desafios ligados aos níveis da taxas de juro, é certo, mas muito mais ao seu modelo de negócio. Os mecanismos que obrigam a uma grande cautela na concessão de crédito e a disrupção tecnológica – que só está a começar – são temas que me parecem mais relevantes para o longo prazo do que o nível das taxas de juro. Mas também se deve reconhecer que as taxas muito baixas permitiram aos bancos evitar ou resolver muitos casos de malparado, melhorar as suas próprias condições de financiamento e aproveitar o bom momento no imobiliário de várias formas.

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