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Do pau-de-arara ao Lava Jato. Quem é Lula da Silva?

Da venda de laranjas à fábrica de parafusos, da prisão por razões políticas e das greves às reivindicações sindicais, assim ficou marcado o caminho de Lula até à chefia do Estado. O presidente favorito dos brasileiros vê agora a sua popularidade descer com as suspeitas de corrupção.

Ueslei Marcelino/Reuters
Liliana Borges LilianaBorges@negocios.pt 18 de Março de 2016 às 19:45

Luiz Inácio Lula da Silva. Ou simplesmente Lula. Foi um dos presidentes mais populares do Brasil, mas as recentes polémicas e suspeitas de envolvimento em casos de corrupção tornam-no hoje manchete de vários jornais pelas piores razões. Quem é afinal o antigo presidente analfabeto que mudou a relação dos brasileiros com a política?

Hoje com 70 anos, a história de Lula começou a 27 de Outubro de 1945 numa pequena cidade no interior de Pernambuco. Numa casa assente em chão de terra batida, sem luz ou água canalizada, a pobreza da família não o deixou ser criança. Para fugir às dificuldades, a mãe de Lula vendeu todas as posses, incluindo até fotografias de família. Aos 7 anos, o menino que queria ser jogador de futebol do Corinthians Paulista deixou a cidade natal em direcção a São Paulo, onde o seu pai – que tinha saído de Pernambuco ainda antes de Lula nascer, já tinha constituído outra família. A viagem à boleia de um "pau-de-arara", uma sobrelotada carrinha de caixa aberta, durou uns 13 longos dias. Durante a viagem alimentou-se de farinha, rapadura (um doce semelhante ao açúcar mascavado) e queijo ralado. As refeições eram feitas debaixo da carrinha, que descreveu numa entrevista a uma rádio brasileira:

cotacao Não tem nem encosto atrás. Não é um banquinho de madeira. É uma tábua grudada na carroceria. Você senta e não tem encosto. A gente pode cair. Tinha umas 30, 40 pessoas dentro do caminhão. A gente dormia na calçada. Se esticava e começava a dormir ali. Às vezes, com um cobertorzinho. E, de repente, a gente acordava embaixo da chuva e tinha de correr para debaixo do caminhão. Não cabia todo mundo. Ficava todo mundo amontoado debaixo do caminhão. Lula da Silva Sobre a viagem até São Paulo

Quando chegou a São Paulo a única camisa com que viajava estava podre, à mesma rádio

 

Mas em São Paulo a vida não seria mais fácil para Lula e por isso, com apenas oito anos, ocupou-se de biscates para ajudar nas despesas da família. Vendeu laranjas e amendoins nas ruas e foi engraxador. Os obstáculos à sua formação, inclusive por parte do pai que acreditava que os filhos não precisavam de ir à escola, impediram-no de prosseguir os estudos além dos 14 anos.

 

É com essa idade que Lula da Silva começa o seu primeiro emprego, nos Armazéns Gerais Columbia. Depois disso passou para uma fábrica de parafusos, numa época em que a cidade se tornava uma das mais industrializadas do país com algumas das principais metalúrgicas do mundo, como a Scania e Volkswagen.

É na fábrica de parafusos que acontece um dos episódios marcantes da sua vida: o seu dedo mindinho é esmagado por um torno mecânico. Depois de esperar horas pelo seu chefe para poder recorrer à assistência médica, não consegue escapar à amputação. Da decisão, que o deixou com complexos – viria a confessar anos mais tarde a um jornalista, resultou uma indeminização de 350 mil cruzeiros que utilizou para comprar móveis e um terreno para a sua mãe.

Do golpe no dedo ao golpe militar

Estamos em 1964 e o Brasil testemunha o golpe militar que instaura a ditadura. Instalam-se tempos de forte censura à liberdade de expressão e repressão política e é então que Lula começa a dar os primeiros passos no sindicalismo, que o conduziriam à vida política. Sem se identificar com a organização dos sindicatos à data, acaba por sucumbir à influência do seu irmão José Ferreira da Silva, ou Frei Chico, militante do Partido Comunista Brasileiro.

Por esta altura, Lula perde a esposa e o filho do primeiro casamento. Maria de Lourdes da Silva, que tal como Lula era operária, contraiu hepatite no oitavo mês de gravidez e não resistiu à cesariana. Para Lula, a situação foi resultado de negligência médica. 

cotacao Ela estava numa situação deplorável no hospital, com um monte de gente no quarto. Ela gritava, eu fui chamar a enfermeira, a enfermeira não quis atender. Na segunda- feira, eu fui levar a roupinha da criança. Cheguei lá e ela estava morta. Meu filho estava morto. Isso marcou muito a minha vida. Como morreu a Lourdes, morrem milhões de pessoas por aí nesse país sem ter o menor tratamento médico. Lula da Silva Sobre a morte da primeira mulher e filho

Cinco anos depois do primeiro contacto com o mundo dos sindicatos, e conhecido pela sua resiliência, é eleito para um lugar de suplente. Em 1975, com 30 anos, foi eleito presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema com 92% dos votos. No mesmo ano, e já com uma filha, casa-se pela terceira vez. A união com Marisa Letícia dura até hoje e dele resultaram quatro filhos.

Entre 1978 e 1980, Lula lidera várias greves gerais que assumem fortes proporções e abalam o regime militar, tornando-o um opositor no cenário político. Um opositor que teria de ser travado. A 19 de Abril de 1980 passa 31 dias na prisão e foi condenado a três anos de prisão, sentença que acabou por ser revogada.



Da prisão sai decidido a estabelecer uma nova força política. Para combater a inexistência de políticos que representassem os interesses dos trabalhadores no Congresso Nacional, o sindicalista começa a trabalhar na fundação do Partido dos Trabalhadores (PT).

 

O caminho até ao Palácio do Alvorada

Operários, intelectuais, artistas, estudantes. O Partido dos Trabalhadores surge heterogéneo e apresenta-se como uma nova forma de socialismo democrático, recusando o modelo soviético e chinês. Fundado em 1980, é reconhecido pelo Tribunal Superior de Justiça Eleitoral dois anos depois. Sete anos volvidos e Lula da Silva concorre às primeiras eleições presidenciais directas depois do golpe militar. O operário que não acreditava em sindicatos já tinha conquistado a construção de uma forte imagem política. Lula contribuiu para a introdução do direito à greve e para a redução do horário semanal de trabalho. Concordou com a limitação do direito de propriedade privada, o aborto, a criação de um fundo de apoio à reforma agrária e ao rompimento de relações diplomáticas com países que adoptassem políticas de discriminação racial.

Ainda assim, a popularidade não é suficiente e – ainda que com uma pequena margem de diferença, Lula fica em segundo lugar na corrida presidencial contra Fernando Collor de Mello, do Partido da Reconstrução Nacional, um candidato apoiado por empresários e pela própria comunicação social, que admite ter favorecido Collor de Mello. Uma manipulação registada no documentário britânico Beyond Citizen Kane, que retrata a relação entre os media e o poder político.



Em 1994, o antigo metalúrgico entra novamente na corrida presidencial e é derrotado pelo social-democrata Fernando Henrique Cardoso e novamente em 1998. Durante as várias campanhas, a sua profissão iletrada foi sempre alvo das críticas dos seus adversários, como explicam algumas biografias, que destacam uma das respostas de Lula:

cotacao A elite sabe que sou um vencedor. Uma criança nordestina que não morreu de fome até os cinco anos já venceu na vida. Um nordestino que desembarcou de um pau-de-arara, fugindo da seca, e não virou marginal é um vencedor. No meu governo, um filho de encanador vai disputar vaga na universidade com o filho de uma empresária de teatro como a senhora Ruth Escobar. Lula da Silva Resposta à actriz Ruth Escobar, que à data da campanha para as eleições presidenciais do Brasil havia diminuído a profissão de Lula

A 27 de Outubro de 2002, com 57 anos de idade, depois de uma campanha bem-sucedida que ficava conhecida como "Lulinha, paz e amor", a criança que vendeu laranjas descalça torna-se o 35.º presidente do Brasil. No discurso de tomada de posse, não esquece as suas raízes. "E eu, que durante tantas vezes fui acusado de não ter um diploma superior, ganho o meu primeiro diploma, o diploma de Presidente da República do meu país", declara.


Os escândalos e crises políticas


É ainda durante o primeiro mandato que surgem os primeiros escândalos de corrupção depois de Roberto Jefferson, então deputado federal, ter afirmado numa entrevista ao Folha de São Paulo que existiam deputados no Congresso brasileiro a aceitar subornos, com dinheiro público, a troco de votos favoráveis às intenções do Governo, naquele que ficaria conhecido como "o caso Mensalão". À data, Lula defendeu-se dizendo que as afirmações eram uma tentativa de destruir o seu partido. Apesar do escândalo, conseguiu garantir a sua reeleição em 2006. 


Ainda no poder, e três dias antes de o mentor de Dilma deixar a presidência, o Ministério das Relações Exteriores concedeu um passaporte diplomático a um dos seus filhos, Luís Cláudio, destinado a autoridades, diplomatas e que concede vários privilégios em diversos países. O passaporte foi suspenso pela justiça em 2012. Segundo o juiz, houve uma "absoluta confusão de interesses públicos com interesses pessoais".

Tornou-se o presidente com a maior popularidade desde que foram instituídas as pesquisas de avaliação no Brasil. Como reflexo do apoio, elegeu em 2010 sua antiga ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, para sucede-lo na Presidência. Os escândalos são esquecidos - pelo menos até agora, e nunca chegou a ser formalmente acusado pela operação Mensalão. O caso foi arquivado em 2015.

O maior (e actual) escândalo chega aos 70 anos. No início do ano e já depois de muito se ter escrito sobre a Operação Lava Jato, eis que surge o nome de Lula da Silva. Acusado de lavagem de dinheiro e falsidade ideológica pelo Ministério Público de São Paulo, Lula é alvo do pedido de prisão preventiva a 10 de Março. Em causa está uma investigação que liga o político brasileiro a um apartamento triplex, em Guarujá, no litoral de São Paulo, que terá sido alegadamente cedida à família de Lula pela construtora OAS, investigada no caso corrupção na Petrobras. Até agora, Lula tem negado deter a propriedade.

Quem não deve, não teme

Em 1988, antes de subir à presidência do país, Lula da Silva afirmava: "No Brasil é assim: quando um pobre rouba vai para a cadeia, mas quando um rico rouba ele vira ministro". Quis a ironia do tempo que a declaração fosse agora recuperada, aquando da sua nomeação para ministro da Casa Civil pela actual presidente, Dilma Rousseff. Escutas feitas aos dois políticos sugerem que a nomeação surge para proteger Lula da investigação judicial, uma vez que passou a estar abrangido por imunidade, ou "foro privilegiado", podendo apenas ser investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Depois de ter sido suspenso e ver a decisão indeferida, o presidente mais popular do Brasil deverá continuar a preencher as manchetes da imprensa um pouco por todo o mundo.

 

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