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Reguladores apertam cerco ao Facebook e ameaçam "like" dos investidores
A utilização indevida de milhões de perfis da rede social para fazer análise preditiva, ajudando no Brexit e a eleger Trump, fez soar as campainhas dos dois lados do Atlântico. Especialista defende sanções para empresas "levarem a sério a privacidade".
É uma verdadeira aliança transatlântica contra o Facebook. As autoridades legislativas ou regulatórias nos Estados Unidos, na União Europeia e no Reino Unido estão a avançar com processos de averiguações contra a gigante tecnológica. A porção de água que fez transbordar o copo é a descoberta de que os dados pessoais de 50 milhões de utilizadores da rede social foram recolhidos sem permissão e usados por uma empresa de estudos de mercado que ajudou a campanha do Brexit e trabalhou na eleição de Donald Trump.
A Comissão Federal de Comércio dos EUA (FTC, na sigla em inglês) acaba de abrir uma investigação à possível violação dos termos de um acordo de consentimento sobre a partilha de dados dos utilizadores, firmado em 2011, que a obriga a pedir autorização para fazer mudanças nas definições de privacidade. Segundo noticia a Bloomberg esta terça-feira, 20 de Março, se concluir que foi violada essa norma, neste caso com a Cambridge Analytica, então esta entidade de protecção da privacidade "tem o poder de multar a empresa em milhares de dólares por dia".
Para se ter uma ideia da dimensão deste caso, 50 milhões de perfis representam mais de um terço dos eleitores americanos que foram às urnas nas últimas eleições. Talvez por isso já tenha levado, por exemplo, os procuradores de Massachusetts e do Connecticut a anunciar a abertura de processos, a senadora Amy Klobuchar (Minnesota) a desafiar o fundador da rede social, Mark Zuckerberg, a testemunhar no Senado, ou até a outras reacções de perplexidade e incomuns em responsáveis políticos da ala republicana, como Mark Rubio (Florida) ou Jeff Flake (Arizona), normalmente mais avessos à ideia de uma maior regulação nos negócios privados.
Face às doações feitas pelo proprietário do fundo de investimento que detém a Cambridge Analytica, o multimilionário Robert Mercer, a Nigel Farage (UKIP) e à campanha a favor do Brexit, também a comissão eleitoral desse referendo para a saída da União Europeia, realizado em Junho de 2016, está a investigar a companhia liderada por Mark Zuckerberg. Aliás, o fundador do Facebook, que tem estado em silêncio – e a ser criticado por isso – já foi inclusive desafiado pelo líder de uma comissão do Parlamento britânico que supervisiona as áreas do digital e dos média, Damian Collins, para ser ele próprio a dar explicações sobre esta " falha catastrófica".
O advogado João Ferreira Pinto, especialista na área da protecção de dados, aponta ao Negócios que "o facto de haver mais regras de controlo e de comunicação obriga a que seja mais clara e leal a relação entre os titulares dos dados e quem os trata e ganha muitos milhões com eles". Lembrando que, segundo as regras europeias aplicáveis a partir de Maio, o Facebook arrisca pagar multas até 4% do seu volume de negócios anual global – em 2016 totalizou 27,6 mil milhões de dólares –, o "partner" da Antas da Cunha Ecija & Associados sustenta que "as entidades de supervisão têm aqui um papel decisivo porque só quando houver sanções e uma fiscalização efectiva é que estas gigantes tecnológicas levam a sério o tema da privacidade".
A verdade é que esta promessa de um maior escrutínio e penalização por parte dos órgãos de regulação a plataformas como o Facebook, Twitter, Youtube ou Alphabet já está a provocar fortes receios nos investidores, que temem que estas empresas tecnológicas comecem a pagar multas milionárias por casos deste género e que possam também acabar por perder subscritores, anunciantes e receitas de publicidade. Esta terça-feira, as acções do Facebook continuavam em queda no mercado, depois de na véspera já terem deslizado mais de 6%, na sequência da denúncia de Christopher Wylie, ex-funcionário da Cambridge Analytica, que contou como a informação foi recolhida em 2014 através da aplicação "This Is Your Digital Life".
Esta reacção do mercado de capitais terá já também o impacto da notícia do afastamento do responsável de segurança do Facebook, Alex Stamos, dada nas últimas horas pelo The New York Times e confirmada pela Reuters, adiantando que a saída definitiva apenas acontecerá em Agosto. E este gestor, como relata a agência, era tão só um dos maiores defensores internos de uma investigação mais profunda à propagação de informações falsas na rede social e à alegada manipulação russa durante a campanha eleitoral que levou Trump ao poder na Casa Branca.
Bruxelas prepara "aperto" nas regras
Na Europa, este caso também está a provocar várias ondas de choque. E o regulador da Irlanda, que supervisiona as operações pan-europeias do Facebook, já lançou um sério aviso, através de um comunicado divulgado esta manhã. "A comissão irlandesa de protecção de dados está a acompanhar o caso [com a sucursal europeia] em relação às formas de supervisão activa – de quem desenvolve as aplicações móveis e de entidades terceiras que usam a sua plataforma – que estão em vigor, com o objectivo de assegurar a sua efectividade", lê-se na nota, citada pelo Financial Times.
Em Bruxelas, já depois de ter pedido uma investigação completa a esta alegada "manipulação inaceitável" e falar de uma "ameaça à democracia, o presidente do Parlamento Europeu, Antonio Tajani, voltou à carga na rede social Twitter para anunciar que Zuckerberg já foi convidado para explicar perante os deputados europeus, "representantes de 500 milhões de europeus", que os dados pessoais não são usados para "manipular a democracia".
We’ve invited Mark Zuckerberg to the European Parliament. Facebook needs to clarify before the representatives of 500 million Europeans that personal data is not being used to manipulate democracy.
— Antonio Tajani (@EP_President) March 20, 2018
Da parte do Executivo comunitário, um comunicado assinalou que "o mau uso de dados pessoais de utilizadores do Facebook para fins políticos – se confirmado – é inadmissível". Ainda durante esta semana, o tema vai ser discutido pela comissária europeia da Justiça, com a pasta da protecção de dados, Vera Jourova, com os responsáveis da rede social e também num encontro pessoal com Wilbur Ross, secretário de Estado do Comércio na administração norte-americana, durante uma visita programada a Washington.
Um dos tópicos que estará em cima da mesa é o facto de o Facebook saber desta potencial falha há dois anos, sendo que o novo Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD) obriga a uma comunicação formal às entidades de controlo e de supervisão em 72 horas sempre que haja uma quebra de segurança – e, nos casos de ataques mais graves, as empresas a avisar os próprios detentores dos dados pessoais.
"Um dos objectivos do regulamento é pôr na ordem e disciplinar toda esta actividade desenfreada e ilegal, sobretudo com o comércio que fazem com os nossos dados. (…) Os novos poderes que o regulamento vem atribuir às autoridades nacionais de controlo [em Portugal é a Comissão Nacional de Protecção de Dados], e sobretudo a criação de um supervisor europeu, vai levar a que as empresas com o Facebook pensem duas vezes antes de darem os nossos dados a terceiros e de os venderem para os mais diversos fins", conclui o advogado João Ferreira Pinto.