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Sem troika, Dublin carrega sozinha peso das reformas

O Negócios esteve na Irlanda, poucos dias depois do fim do programa de ajustamento. Já sem troika, com eleições em cinco meses e tratados europeus para cumprir, Dublin tem de decidir se as reformas e a austeridade são para continuar.

Reuters
Nuno Aguiar naguiar@negocios.pt 20 de Janeiro de 2014 às 00:01

Em Dublin respira-se de alívio, mas não se canta vitória. Acabados de sair do programa de ajustamento, com crescimento económico e uma recepção de braços abertos pelos investidores, a Irlanda discute que caminho deve seguir nos próximos anos. Do Governo aos comentadores, ainda não há certezas sobre se assistimos a uma fénix a levantar voo ou a um tigre ainda a lamber as feridas.

 

A saída da crise tornou-se consensual na Irlanda. 2013 deverá ter sido o terceiro ano consecutivo de crescimento económico e o primeiro de descida da taxa de desemprego. A troika saiu do País satisfeita com os esforços de reforma e o Governo continua a superar as metas de consolidação orçamental.

 

"Há alívio no Governo por terem conseguido ser bem sucedidos a sair do programa, mas existe trepidação política com o fim da cobertura dada pela troika, utilizada como justificação para a austeridade", diz Arthur Beesley, editor da secção de política do "Irish Times". É isto que se discute hoje em Dublin. O que fazer agora que a troika se foi embora? Manter o pé no acelerador da austeridade e das reformas ou abrandar o ritmo?

 

Do Ministério das Finanças, não há dúvidas. "A aplicação de reformas vai continuar mesmo sem a troika e sem programa cautelar", explica um alto responsável, durante um encontro com jornalistas estrangeiros em Dublin, organizado pela Comissão Europeia. Os números parecem suportar essa ideia. Este ano, o Executivo irlandês ainda planeia aplicar medidas de austeridade no valor de 1,8% do PIB e, em 2015, mais 1,1%.

 

Apesar de estarem a conseguir cumprir as metas de défice a que estavam obrigados, o défice irlandês apenas se deverá aproximar dos 5% no final de 2014. Acima dos valores esperados para Portugal. "Do lado orçamental, temos o pacto de estabilidade e crescimento, o 'six pack', os objectivos de médio prazo, os limites de défice e dívida... legalmente, temos de cumprir."

 

Dúvidas sobre estratégia do governo

 

Pat Leahy, editor do "Sunday Business Post" tem mais dúvidas sobre a estratégia do Governo daqui para a frente. "Na minha opinião, as reformas acabaram. A recuperação tornou-se um facto político. A estratégia do Governo sempre foi fazer o que a troika queria e esperar que o crescimento chegasse." Em Maio, em conjunto  com as europeias, haverá eleições locais na Irlanda, onde os partidos que estão no poder têm muito a perder, já que obtiveram fortes resultados no escrutínio anterior. Uma queda muita grande poderá pressionar o Executivo a relaxar a estratégia de austeridade e reformas dolorosas. "Os políticos irlandeses são hiper-reactivos a opiniões negativas dos eleitores."

 

Os irlandeses estão a tentar preparar-se para o futuro, mas o caminho é incerto. A dependência do investimento estrangeiro está a impulsionar a retoma, mas também deixa dúvidas sobre o futuro. Numa conferência organizada pela Comissão Europeia, "Direcções Futuras para a Economia Irlandesa", Nicholas Crafts, da Universidade de Warwick, argumentava que a reduzida dimensão do País e a elevada mobilidade dos trabalhadores e de capital faz com que os cenários de crescimento sejam mais diversos do que o normal para uma economia avançada. "A Irlanda pode ser Detroit ou pode ser Silicon Valley", explicava.

 

O Executivo foi pressionado pela troika, que queria mais rapidez nas reformas de sectores protegidos, mas os credores nunca exigiram mudanças estruturais profundas num País já bastante liberal. "Quando a troika chegou cá, pouco tinha a dizer sobre o nosso modelo económico", explicam as Finanças. 

 

Mesmo a consolidação orçamental baseou-se nas medidas de um documento que o Executivo irlandês já tinha preparado, confirmam fontes da troika. Na mesma conferência, o governador do Banco Central da Irlanda, Patrick Honohan dizia que "o Governo teve liberdade para escolher as medidas. As exigências da troika foram razoáveis, com excepção de algumas ideias muito más". No IRC nunca ninguém tocou. É, ainda hoje, classificado pelos responsáveis da troika no País como uma "vaca sagrada" na Irlanda. 

 

O sucesso irlandês materializou-se com o anúncio de que não iria candidatar-se a um programa cautelar. "O programa seria só de um ano e não vimos nada que pudesse acontecer e que nos fizesse precisar dele", esclarece o Executivo. Curiosamente, esse timing coincide com os testes de stress do Banco Central Europeu, que continua a ser o principal risco associado à Irlanda. Quanto a isso, as Finanças admitem não saber o que vai acontecer. "Para nós, não há nada para ver."

 

 
Os riscos que a Irlanda enfrenta

O alívio de ter terminado o programa de ajustamento convive com um leque significativo de riscos. A maior parte está no sistema financeiro, mas as consequências sociais da austeridade também deixaram marcas.

 

Testes de stress do Banco Central Europeu

É o grande risco para a Irlanda: saber se os testes de stress aos bancos europeus vão revelar mais necessidades de capital para a a banca. Do lado irlandês, responsáveis pelas negociações com a troika admitem que não sabem se o testes vão revelar novos problemas ou não. "Não sei se vão precisar de mais capital, embora não espere ter surpresas", explica um responsável ligado ao sistema financeiro. "Mas claro que não seria conveniente para o Governo."

 

Os resultados dos testes de stress têm de ser publicados até Novembro deste ano. Recorde-se que foi a implosão do seu sistema financeiro que empurrou a Irlanda para o pedido de resgate à Europa. "O medo é que os bancos irlandeses precisem de mais capital e que ele tenha de ser injectado pelo Estado. Seria difícil de justificar perante os irlandeses", explica Arthur Beesley, editor do "Irish Times".

 

Crédito malparado das famílias

Ainda dentro do sistema financeiro, o crédito malparado das famílias continua a agravar-se. Os últimos dados - de Setembro de 2013 - apontavam para já atingir 12,9% dos empréstimos à habitação, muito superior em relação ao valor de Setembro de 2009 (3,3%). Por comparação, em Portugal está actualmente nos 2,3%. Este é um dos principais desafios que a Comissão Europeia considera que ainda não foram resolvidos. O aumento do malparado tem não só custos sociais muito elevados, como prejudica a concessão de novo crédito pelos bancos.

 

Além disso, em 2012 as famílias irlandesas deviam 196% do rendimento disponível. "Na União Europeia, só Holanda e Dinamarca têm rácios mais altos de dívida em percentagem do rendimentos disponível", aponta Dan O'Brien, comentador irlandês e economista-chefe do Instituto para Assuntos Internacionais e Europeus.

 

Feridas sociais por cicatrizar

"A crise tem tido um impacto semelhante entre todos os níveis de rendimento, mas claro que os rendimentos mais baixos sofrem mais e o número de famílias com situações de privação material aumentaram", admitiu o governador do Banco Central da Irlanda, numa conferência organizada pela Comissão Europeia.

 

No mercado de trabalho, o emprego começou a crescer, mas o desemprego de longa duração continua a aumentar e tem um dos maiores pesos no desemprego total de toda a Europa (mais de 60%). As pessoas nesta situação são normalmente pouco qualificadas e, muitas delas, trabalhavam no sector da construção, antes de a bolha rebentar. A troika teme que não regressem ao mercado de trabalho.

 

A Irlanda tem também a maior percentagem da União Europeia de crianças até aos 17 anos que vivem num agregado onde ninguém tem trabalho (20%).

 

Austeridade é para continuar

A troika saiu da Irlanda, mas austeridade está para ficar. Pelo menos nos próximos dois anos. Apesar de a imagem da Irlanda ser de um país onde o ajustamento foi mais leve, a realidade é que a consolidação orçamental arrancou em 2008. Entre esse ano e 2015, os irlandeses enfrentaram medidas de austeridade num valor equivalente a 20% do PIB, mostram documentos oficiais das Finanças.

 

Segundo as estimativas do Governo, 2014 e 2015 trarão ainda um esforço de consolidação orçamental de 1,8% e 1,1% do PIB, respectivamente. "Do lado orçamental, temos o pacto de estabilidade e crescimento, o 'six pack', os objectivos de médio prazo, os limites de défice e dívida... legalmente, temos de cumprir", esclarece um alto responsável do Ministério das Finanças. Até porque só no final deste ano é que o défice irlandês se aproximará dos 5% do PIB.

 

* Em Dublin

 

 

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