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Donald Trump: Aceitará ele a derrota?

Donald Trump começa a contemplar a possibilidade de derrota e acusa o sistema de estar “viciado”. Caso Hillary vença, será que, pela primeira vez na História da democracia dos EUA, o vencido não aceitará o resultado?

12 de Agosto de 2016 às 12:00
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Em 1860, os Estados Unidos não podiam ser uma nação mais dividida. Dentro de um ano, o país cairia numa guerra civil sangrenta onde morreriam mais de 700 mil soldados, deixando cicatrizes profundas entre Norte e Sul que resistem até hoje. Como seria de esperar, as eleições desse ano foram um momento quente, que culminaria na vitória de Abraham Lincoln. Ainda assim, num momento de retórica tão inflamada e mesmo perante a iminência de pegar em armas, um dos derrotados, o senador Stephen A. Douglas, concedeu a derrota: "O sentimento partidário tem de resultar em patriotismo. Estou consigo, Sr. Presidente, e Deus o abençoe."

A citação foi lembrada em 2000 por Al Gore (quem mais?), quando admitiu a derrota face a George W. Bush nas eleições presidenciais, depois de uma polémica decisão do Supremo Tribunal dos EUA ter travado a recontagem dos votos na Florida. "Que não haja dúvidas, embora eu discorde profundamente da decisão do tribunal, eu aceito-a. Aceito a finalidade deste resultado […] e esta noite, em nome da nossa união como povo e da força da nossa democracia, ofereço a minha concessão." Embora os derrotados das eleições sejam muitas vezes empurrados para as notas de rodapé da História, o seu comportamento na noite eleitoral representa um dos principais pilares da democracia. Nos Estados Unidos, nunca um derrotado questionou a legitimidade das eleições. Até aqueles que tiveram maior número de votos do que os vencedores.

No entanto, como em muitos outros momentos da sua campanha, Donald Trump parece estar a desafiar as convenções históricas, com um discurso que está a deixar muitos americanos preocupados com o que acontecerá na noite de 8 de Novembro se os republicanos perderem. Aceitará ele a derrota? Nos últimos dias, o milionário tem colocado em causa o sistema eleitoral e que será necessário actuar caso Hillary Clinton vença, dando até a entender que isso poderá ser feito com recurso a armas.


Trump não pisa a linha da discussão política. Ele compra o terreno da linha, subcontrata uma empresa para a implodir, constrói um casino gigante de vidros espelhados e acabamentos em ouro, chama-lhe Trump Line e passa a vender linhas com a cara dele pintada. 


"Se ela conseguir nomear os juízes, não há nada que possam fazer, malta. Embora as pessoas [que defendem] a Segunda Emenda talvez possam [fazer algo]", afirmou o candidato republicano. A Segunda Emenda à Constituição dos EUA consagra o direito de os americanos deterem armas. A sua interpretação tem sido altamente disputada, com o Supremo Tribunal como principal campo de batalha. A declaração de Trump foi vista por vários órgãos de comunicação social como uma espécie de incentivo à utilização de violência contra Clinton caso ela seja eleita (é a Casa Branca que nomeia os juízes do Supremo). Uma interpretação que Trump negou, acusando os "media liberais" de parcialidade em relação à sua candidatura. A verdade é que, mesmo dentro do seu partido, essa não foi a leitura. Paul Ryan, porta-voz da Câmara dos Representantes, classificou a frase como "uma piada que correu mal" e avisou que não se deve brincar com esse tipo de insinuações.

Independentemente da interpretação deste episódio, ele insere-se num conjunto de declarações praticamente inéditas por parte de um candidato presidencial. Trump não pisa a linha da discussão política. Ele compra o terreno da linha, subcontrata uma empresa para a implodir, constrói um casino gigante de vidros espelhados e acabamentos em ouro, chama-lhe Trump Line e passa a vender linhas com a cara dele pintada.

O milionário chama repetidamente à sua adversária "Hillary desonesta" (ou sem princípios), enquanto os seus apoiantes gritam "prendam-na! prendam-na!" E o seu desdém estende-se às próprias instituições democráticas. Trump tem referido, por mais do que uma vez, que as eleições estão viciadas. "No dia 8 de Novembro, é bom termos cuidado, porque a eleição vai ser manipulada ["rigged"]. E espero que os republicanos estejam atentos ou ela vai-nos ser tirada", alertou.

Ele já o disse por várias vezes e com diferentes formulações. Mas não é só a repetição que denuncia a intenção de frisar a mensagem. Outras pessoas próximas de Trump fizeram alusões semelhantes recentemente. Roger Stone, conselheiro de longa data do milionário, avisou que haverá um "banho de sangue" se Clinton vencer, esclarecendo que não está a falar de "violência", mas sim de "desobediência civil" e de não deixar o governo funcionar. Esta dificuldade em conviver com o resultado das eleições nem sequer é nova em Trump. Em 2012, na noite em que Barack Obama foi reeleito, o agora candidato republicano não resistiu a escrever uma série de tweets, com frases como "Mais votos resultam numa derrota… revolução!" ou "Não podemos deixar que isto aconteça. Devemos marchar sobre Washington e travar esta vergonha".

O grande problema é que o candidato republicano e a sua "entourage" não agem nem falam num ambiente controlado. Na realidade, com a sociedade americana tão dividida, esta estratégia de suspeição é o equivalente a deitar gasolina numa fogueira que já está em risco de se descontrolar. Joseph Uscinski, professor de Ciência Política da Universidade de Miami, estuda este fenómeno das teorias da conspiração e está preocupado com aquilo que poderá acontecer no pós-eleições. "Se Trump fizer com que os seus apoiantes fiquem nervosos, eles podem ir para as ruas cometer actos de violência. É importante que os derrotados concedam graciosamente em vez de pedir para que haja acção nas ruas", afirma ao Negócios.

Além da cisão política, determinada por trincheiras partidárias, os americanos são também permeáveis a teorias de fraude eleitoral. "Muitas pessoas sentem-se atraídas pela retórica de Trump porque já acreditam nela. Um grande número de americanos acha que, de uma forma ou de outra, as eleições são fraudulentas", acrescenta Uscinski. "Os democratas acham que os seus eleitores serão intimidados ou impedidos de votar. Os republicanos acham que os democratas vão votar várias vezes."


Uma sondagem nacional realizada pouco tempo antes da eleição de 2012 concluía que 62% da população achava que, caso o seu candidato preferido perdesse, seria porque houve fraude eleitoral. Mais: 85% (!) achavam que o outro lado usou "jogo sujo" para tentar ganhar. Um inquérito mais recente mostra que isso não mudou. Entre os apoiantes de Trump da Carolina do Norte (um estado muito renhido nas eleições), 69% acham que se Clinton for eleita é porque houve fraude. Apenas 16% admitem que ela possa ganhar por recolher mais votos.

O problema é que, embora muitos acreditem que a fraude eleitoral é um factor decisivo, ela é muitíssimo rara nos EUA. Por exemplo, segundo Justin Levitt, entre 2000 e 2014, houve 35 acusações credíveis de fraude no presencial. Nesse mesmo período, foram contabilizados mais 834 milhões de votos em eleições presidenciais. Num artigo que escreveu para o Washington Post, Uscinski nota que algumas análises até concluem que o número de pessoas que se fazem passar por outras nas urnas é semelhante àquelas que dizem ter sido raptadas por extraterrestres. "Alguma suspeição é sempre legítima e, na quantidade certa, pode ser boa. Se ninguém estivesse preocupado com a integridade das eleições, elas seriam facilmente corrompidas por um mau actor", explica ao Negócios. "Mas os dados mostram que os casos de fraude são muito raros e inconsequentes."

Há, essencialmente, um problema de desinformação. Outras sondagens concluíam que dois terços dos apoiantes de Trump pensam que Obama é muçulmano e 59% consideram que ele não nasceu em território americano (Trump já foi principal embaixador desta ideia). O próprio candidato republicano joga com isso, acusando Obama de ser o "fundador do Estado Islâmico".

Para trás nas sondagens

Muitos notam que estas declarações mais inflamadas coincidem com o surgimento de sondagens negativas para a campanha Trump, pelo que ele está apenas a arranjar desculpas antecipadas para uma possível derrota. Depois de o milionário se ter aproximado e até ultrapassado Clinton em alguns inquéritos, nas últimas duas semanas, a ex-primeira-dama disparou nas intenções de voto.

Na realidade, Trump estava a beneficiar de dois acontecimentos: a conclusão da investigação do FBI sobre a utilização do e-mail pessoal por Clinton enquanto era secretária de Estado (crítica para a democrata); e aquilo que os analistas chamam um "convention bump". Isto é, a organização da convenção republicana (que antecedeu a democrata) deu um empurrão a Trump nas sondagens. Porquê? Porque entre 18 e 21 de Julho a cobertura mediática concentrou-se quase exclusivamente no Partido Republicano, dando tempo de antena à narrativa que pretendem vender.

Porém, o "bump" de Trump parece ser pálido em comparação com aquilo que a campanha de Clinton sentiu. Apesar das dificuldades em convencer os apoiantes de Sanders, a convenção democrata terminou com a ascensão da democrata Hillary nas sondagens. Não só o empurrão foi maior, como parece ser mais perene do que o de Trump. O site FiveThirthyEight, do estatístico Nate Silver, calcula que se a eleição fosse hoje, Hillary Clinton tinha 89% de hipóteses de vencer. O site disponibiliza ainda outra ferramenta - com base nas sondagens, mas descontadas destes "convention bumps" e filtradas segundo o comportamento passado, andamento da economia, entre outros factores - que conclui que Clinton tem 76% de hipóteses de vencer. A matemática do NYT é ainda mais simpática para a democrata e dá-lhe 86% de hipóteses de ser eleita. Quão más estão as coisas? Bom, estados que tipicamente são republicanos parecem estar agora em risco de cair para o lado democrata, como é o caso do Arizona, Georgia ou Carolina do Norte.


"Muitas pessoas sentem-se atraídas pela retórica de Trump porque já acreditam nela. Um grande número de americanos acha que as eleições são fraudulentas." 


Mas, tal como com as sondagens que mostravam Trump a liderar a corrida se mostraram pouco resistentes, esta reviravolta a favor de Clinton, embora pareça mais sólida, também deve ser interpretada com cautela. Olhando para as eleições anteriores, o normal é a corrida ir aproximando os dois candidatos à medida que ficamos mais perto do dia das eleições. E, neste caso, até há motivos para isso. É verdade que Donald Trump é o candidato presidencial mais impopular das últimas décadas, mas sabe quem aparece a acenar em segundo lugar? Isso mesmo: Hillary Clinton. Além disso, uma eleição num país cada vez mais dividido traz simpatizantes partidários mais fiéis, que muito dificilmente permitirão que Trump tenha um resultado péssimo. Pelo menos até agora, os republicanos parecem continuar com Trump. Contudo, a sua lealdade foi colocada à prova, num teste que seria impensável no passado: escolher um lado entre o nomeado do Partido Republicano e os pais de um herói de guerra morto em combate?

Trump vs. Khan pelo coração (púrpura) da América

8 de Junho de 2004. Era de manhã na base de Baqubah, no Nordeste de Bagdade, quando um táxi laranja e branco se aproximou lentamente da base. O capitão Humayun Khan mandou os seus companheiros deitarem-se no chão e deu dez passos na direcção do veículo. O condutor fez rebentar os 90 quilos de explosivos que transportava, matando Khan e dois iraquianos. O facto de a explosão ter ocorrido antes do portão, poupou não só os companheiros de Khan, como os mais de 100 soldados que estavam a tomar pequeno-almoço perto da entrada. Khan é muçulmano. Foi enterrado no Cemitério de Arlington e recebeu postumamente a Estrela de Bronze e o Coração Púrpura, duas honras militares das Forças Armadas dos Estados Unidos.

2 de Agosto de 2016. Durante um discurso em Ashburn, Virgínia, um veterano de guerra ofereceu a Donald Trump a sua medalha de Coração Púrpura, atribuída a soldados feridos ou mortos em serviço militar. O candidato republicano, que escapou à Guerra do Vietname por estar a estudar e, depois, por um esporão no calcanhar, foi sincero ao receber a prenda: "Sempre quis receber um Coração Púrpura. Assim foi muito mais fácil."

Antes de morrer, Humayun Khan saberia certamente quem era Donald Trump. Mas Trump muito provavelmente não fazia ideia de quem era Khan. No entanto, a sua história de vida simbolizou um dos principais momentos de viragem das eleições norte-americanas. O contraste é óbvio: um muçulmano que deu a vida pelos EUA e um candidato a Presidente que pretende impedir a entrada de muçulmanos no país.

Num cemitério repleto de cruzes e estrelas de David, a campa de Humayun Khan destaca-se das outras. Outros 13 muçulmanos já morreram a combater pelos Estados Unidos  desde o 11 de Setembro.
Num cemitério repleto de cruzes e estrelas de David, a campa de Humayun Khan destaca-se das outras. Outros 13 muçulmanos já morreram a combater pelos Estados Unidos desde o 11 de Setembro. Joshua Roberts/Reuters
Durante a convenção do Partido Democrata, um dos discursos mais marcantes foi feito por Khizr Khan, pai de Humayun. Com a mulher ao lado, Khizr encarou Trump. "Já alguma vez foi até ao Cemitério de Arlington? Vá e olhe para os túmulos dos corajosos patriotas que morreram a defender os Estados Unidos da América", sublinhou. "Você [Trump] não sacrificou nada nem ninguém."

Todos os manuais de política dizem que Trump não devia responder ou, no mínimo, devia mostrar a maior compaixão possível pela perda de dois pais, que ainda estão de luto pelo filho. Mas Trump nunca se regeu pelos manuais da política e não era agora que ia começar. O candidato republicano insinuou que a mãe de Humayun, Ghazala Khan, estava proibida de falar na convenção democrata e defendeu que a sua vida também foi dura: "Eu fiz imensos sacrifícios. Trabalhei muito, muito. Criei milhares e milhares de empregos."

Desta vez, a coisa não lhe correu tão bem. O bate-boca com os Khan foi mal visto pela grande maioria dos americanos. Uma sondagem da ABC concluía que 74% não gostaram da forma como Trump lidou com a questão. Mesmo entre os republicanos, 61% desaprovaram o comportamento do candidato. O episódio foi acompanhado de muitas outras polémicas: expulsar um bebé de um comício, não apoiar algumas das principais figuras republicanas nas suas corridas estaduais, ser classificado como um perigo para a segurança nacional por especialistas do seu partido em segurança externa ou enfrentar o lançamento de uma candidatura independente de um republicano. Mas o embate Trump vs. Khan foi especialmente simbólico.

O NYT escreveu que os assessores e conselheiros de Trump lhe pediram repetidamente para deixar de responder aos Khan e concentrar-se em Hillary Clinton e nas suas propostas. Conselhos que Trump não seguiu. E, afinal, porque haveria de o fazer? No passado, não foi muito prejudicado quando, ao referir-se ao ex-candidato presidencial republicano John McCain (prisioneiro de guerra no Vietname), disse que preferia soldados "que não foram capturados".

Talvez prefira. Mas embora ainda haja muito tempo para as coisas voltarem a virar a seu favor, neste momento, é Trump que parece estar capturado pelo próprio ego e pela perspectiva de perder as eleições. Fica por responder a pergunta com que começámos: se reage assim, acossado apenas por sondagens, como reagirá a uma derrota real na noite de 8 de Novembro?


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