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A longa caminhada de António Guterres

O próximo senhor das Nações Unidas terá cinco anos para aproximar nações cada vez mais desunidas por uma ordem mundial caótica. "Comunicador nato", Guterres terá de fazer uso das suas capacidades de negociador para alcançar aquilo a que se propôs. Mas um mandato pode não chegar.

Miguel Baltazar
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António Guterres está perante um paradoxo: vai correr uma maratona, mas terá de começar o mandato com um "sprint". Esta é a ideia-chave para Miguel Monjardino, professor de Segurança Internacional no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, que define como crucial a primeira fase do mandato do português à frente das Nações Unidas (ONU). Da crise dos refugiados ao conflito sem fim na Síria, passando pela, há muito tempo pedida, reforma da ONU, são vários e complexos os desafios que António Guterres terá de enfrentar nos próximos cinco anos. A sua maratona começa a 1 de Janeiro de 2017, dia em que assumirá as rédeas da organização.

Depois da rara unanimidade conseguida da parte do Conselho de Segurança (CS) da ONU, o português foi, esta quinta-feira, aclamado secretário-geral da organização pelos 193 Estados-membros com assento na assembleia-geral (AG). No primeiro discurso como líder eleito da ONU, António Guterres mostrou "gratidão e humildade" pela "demonstração extraordinária de confiança" que o consenso em torno do seu nome representa e que é um acréscimo de "responsabilidade". O ex-Alto-Comissário da ONU para os Refugiados chega assim com legitimidade reforçada ao "cargo mais impossível do mundo". Porém, avisa Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), "a aclamação no CS, mais do que na AG - que é a tradição nestes processos -, eleva as expectativas do seu mandato em demasia". Consciente disso mesmo, Guterres fez questão de se mostrar "completamente consciente da limitação" relativamente aos "desafios que enfrento".

É que Guterres terá pela frente uma prova de fundo. E não tem tempo a perder. Monjardino recorre ao "desastroso" primeiro mês do ainda secretário-geral da organização, Ban Ki-moon, para explicar que as "más escolhas" então feitas acabaram por marcar os dois mandatos cumpridos pelo sul-coreano. Por isso, o professor de Segurança Internacional considera que os primeiros meses "serão decisivos enquanto período de afirmação e porque definirão a forma como os membros permanentes do CS e da AG vão olhar para Guterres e respectiva equipa".

Independentemente das opções dos mais imediatos antecessores, a verdade é que o secretário-geral eleito chega à liderança das Nações Unidas num momento de particular incerteza. Enquanto Boutros-Ghali, Kofi Annan e Ban Ki-moon encontraram o mundo unipolar pós-Guerra Fria, de fim da História e hegemonia dos Estados Unidos, o antigo primeiro-ministro de Portugal confrontar-se-á com uma ordem internacional marcada pela desordem. Como o próprio dizia, no final de 2014, em entrevista ao Público, "hoje não vivemos num mundo bipolar, não vivemos num mundo unipolar, mas também não vivemos num mundo multipolar. Vivemos num mundo relativamente caótico."

E desde estão tudo se complexificou. Há um novo ciclo nas Relações Internacionais, em transmutação para algo que ninguém consegue definir com precisão. Os conflitos sucedem-se, como são exemplo as guerras civis no Leste da Ucrânia, no Iémen, na Líbia ou ainda no Sudão do Sul. Na mesma entrevista, reflectindo sobre os conflitos que marcam este novo tempo, Guterres apontava o dedo ao CS por ter sido "incapaz de agir". Agora o português será interlocutor privilegiado junto do CS, órgão composto por 15 países e blindado pelo direito de veto dos cinco membros permanentes (P5).

O legado do português dependerá, em grande medida, da sua "capacidade de persuasão" face ao CS, sustenta Mónica Ferro, ex-secretária de Estado da Defesa. Todavia, também o P5 vive momentos de redefinição: a Rússia desafia as normas do direito internacional e actua na Síria (e na Ucrânia) com o objectivo de reassumir um papel de predominância na cena internacional; a China está cada vez mais presente nas operações de paz da ONU, tentando acompanhar militarmente a pujança económica; o papel de um Reino Unido externo à União Europeia é uma incógnita; França tenta lidar com a progressiva perda de relevância económica e política; e os Estados Unidos procuram perceber como actuar, agora que já não pretendem assumir, pelo menos em exclusivo, o papel de "polícia do mundo".

A dificultar a já de si complexa tarefa de gerar consensos no seio do CS está também o recrudescer da tensão entre os Estados Unidos e a Rússia, para níveis não experimentados desde a queda do Muro de Berlim. O Governo norte-americano acusou recentemente Moscovo de realizar ataques informáticos para interferir na campanha presidencial em curso nos Estados Unidos. Antes, a Rússia suspendeu um acordo bilateral com Washington para a eliminação dos níveis excedentes de plutónio utilizado em armas nucleares. Ao que os Estados Unidos responderam com a suspensão das conversações de paz para a Síria. O ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, Frank-Walter Steinmeier, vê o momento actual como o "mais perigoso" desde a implosão do bloco soviético.

"A relação Estados Unidos-Rússia não lhe facilita a vida", admite a professora de Relações Internacionais do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP). Já Bernardo Pires de Lima salienta que, "como com qualquer secretário-geral no passado, também António Guterres terá a amplitude de movimentos que a cooperação/divergência entre essas duas grandes potências ditar". A confirmar as dificuldades decorrentes do confronto entre Washington e Moscovo está a própria história da ONU, "que mostra que sempre que há tensões entre membros do CS, o secretário-geral fica com a sua capacidade de acção diminuída", recorda Miguel Monjardino. O que leva Pires de Lima a pensar que "o CS continuará irreformável a curto prazo".

"Guterres conhece bem os nós górdios"

Apesar de se anteciparem dificuldades várias, o percurso e as qualidades pessoais de António Guterres, bem como o método de eleição agora experimentado pela ONU, são factores que poderão facilitar o papel do português à frente da organização. Desde logo, o saber feito da experiência adquirida durante os 10 anos de chefia do Alto-Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR). Onde lidou com a crise migratória ainda por resolver e que, junto com o terrorismo, reavivou na Europa os fantasmas populistas e nacionalistas de um passado que se julgava esquecido.

"Guterres conhece bem os nós górdios geradores de maciças vagas de refugiados", diz Pires de Lima, que acredita que o "reconhecimento deste problema à escala global" foi fundamental para a sua eleição. Mónica Ferro destaca também a "sensibilidade política" e a "experiência enquanto primeiro-ministro", que lhe granjearam "competências de negociador". É um "comunicador nato", remata. Por outro lado, esta docente do ISCSP constata que o processo de escolha do secretário-geral configurou a "primeira vez em que os membros do P5 foram confrontados com um compromisso assumido pelos candidatos". "Os membros permanentes do CS sabem ao que vem Guterres", conclui Mónica Ferro, secundada por Bernardo Pires de Lima, que destaca a "natureza personalizada e independente" da candidatura do português, que "não é visto como um peão de ninguém". Apesar de rígida, a estrutura da organização garante a Guterres margem para imprimir a sua agenda. "O secretário-geral é o mais alto funcionário da organização, mas isso não faz dele um mero burocrata", nota Mónica Ferro.

Líder para 10 anos?

Na carta de apresentação com que se lançou na corrida à liderança da ONU, António Guterres propôs uma agenda ambiciosa. Aposta na primazia dos direitos humanos, na implementação dos objectivos de desenvolvimento consagrados na Agenda 2030 e numa cultura de "prevenção de conflitos" que assegure "paz e segurança, promovendo o de-senvolvimento sustentável, protegendo os direitos humanos e distribuindo ajuda humanitária". Comprometeu-se também com a paridade total entre homens e mulheres na futura escolha de funcionários da organização.

Para Guterres, o sucesso desta agenda "será determinado pela disponibilidade para mudar e adaptar-se" que vier a ser demonstrada pela ONU, o que exigirá que o secretário-geral "promova reformas e inovação" no funcionamento da organização, assume. O mesmo é dizer que António Guterres se propõe reformar as Nações Unidas. "Tenho fé numas Nações Unidas reformadas", afirmou esta quinta-feira em Nova Iorque. Um objectivo propalado desde os anos 1990, mas sempre adiado. Mónica Ferro afiança que "a ambição desta agenda" não é realizável no curto prazo, pelo que Guterres terá de "pensar num segundo mandato". O problema é que, como refere Monjardino, para ser um "grande secretário-geral", Guterres terá de "enfrentar facções muito poderosas e os interesses das principais potências. E, se o fizer, pode não ter um segundo mandato". A chave para fazer vingar o interesse comum passou a estar também nas mãos de Guterres. Afinal, como salientou o próprio, "o sonho dos fundadores das Nações Unidas continua por cumprir".

Os quatro desafios de António Guterres  Quando, no início do próximo ano, assumir o cargo de secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres já terá delineado um plano de acção. Mas os principais desafios com que a ONU se depara são já bem conhecidos. Uns decorrem de problemas de funcionamento e operacionalidade há muito identificados, outros estão bem explícitos na carta de candidatura do português à liderança da organização. 


Reformar as Nações Unidas
É um dos objectivos sempre presentes e uma promessa sempre por cumprir. Guterres propõe-se reformar não só a estrutura como o "modus operandi" da organização. O que passa por tornar a organização mais ágil e descentralizada (reforma burocrática, incluindo as agências especializadas, os diferentes fundos e programas e os vários órgãos). Para Pires de Lima, uma das "reformas prementes é a da credibilidade das missões", muitas vezes manchadas por "escândalos financeiros, éticos, morais e de violações de populações civis". São recorrentes as acusações sobre abusos sexuais perpetrados por capacetes azuis. Os processos de recrutamento têm também de ser melhorados, valorizando a meritocracia e "corrigindo desequilíbrios de género e geográficos", nota Mónica Ferro. Reformar o Conselho de Segurança e o direito de veto das potências vencedoras da Segunda Guerra será quase impossível, mas, para superar essas "forças de bloqueio" não raras vezes representadas pelo CS, Ferro lembra que Guterres pode invocar o artigo 99 da Carta e introduzir naquele órgão "os assuntos que põem em causa a paz mundial".

Implementar Agenda 2030
Definidos em 2015, são 17 os objectivos de desenvolvimento sustentável que compõem a chamada Agenda 2030. Falhada a concretização dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, estabelecidos em 2000, a ONU definiu como prioridade a prossecução desta agenda que se desdobra em 169 metas, e cujo ritmo de implementação cabe decidir a cada um dos países. Com uma candidatura humanista e inclusiva, Guterres quer "implementar, implementar, implementar", evitando um novo fracasso. Esta agenda de desenvolvimento é essencial para garantir um multilateralismo viável, que não crie mais pobreza e assimetrias. 
ONU como garante de paz e segurança
Criada no pós-guerra (1945) para evitar que tamanho conflito voltasse a repetir-se, as Nações Unidas têm como predicado basilar assegurar a paz e a segurança (Capítulo VII). Contudo, critica Miguel Monjardino, "nos últimos anos, olha-se para estas questões (conflitos) sem se pensar na ONU". Ora, um dos desafios primordiais de António Guterres passa por recuperar o outrora papel central da organização na resolução e prevenção de conflitos. O que exigirá uma maior descentralização e agilização dos processos de tomada de decisão, bem como a flexibilização de uma estrutura fortemente hierarquizada. Com 16 operações de paz em curso e mantendo ainda presença, por exemplo, em Chipre (operação mais antiga da ONU), a organização requer maior efectividade de acção. No conflito sírio, o CS continua a travar uma solução definitiva. Apesar de global, o problema dos refugiados continua sem solução à vista.

Acordo de Paris
O acordo, alcançado há quase um ano na capital francesa, visa responder à ameaça apresentada pelas alterações climáticas, através de esforços para limitar o aumento da temperatura. "Adoptar medidas urgentes para combater as alterações climáticas e os seus impactos" é também o ponto 13 da Agenda 2030, o que é demonstrativo da importância da agenda climática para prosseguir um desenvolvimento sustentável. Mas não só. Como refere Guterres na sua carta de apresentação, trata-se de "uma oportunidade única que tem de ser aproveitada", porque atingir estes objectivos "tem implicações directas para a paz e a realização das necessidades humanas e direitos fundamentais". Conciliar os interesses dos países com economias emergentes, em particular a China, com os objectivos propostos será uma das dificuldades com que certamente António Guterres se irá deparar.


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