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29 de Outubro de 2014 às 21:20

Calhandrice e corrupção

Se um país só pode ser tão bom quanto os meios de comunicação social que tem, como diz o filósofo suíço Alain de Botton, só haverá país bom com uma imprensa que compreende e protege o direito ao bom nome de cada um dos seus cidadãos e que compreende e protege a credibilidade e o prestígio das instituições com que se rege a vida em sociedade.

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Nota: Este artigo está acessível, nas primeiras horas, apenas para assinantes do Negócios Primeiro.

 

Um país bom não pode ter toda uma imprensa calhandreira a atirar suspeitas para as capas dos jornais como quem atira meias para o ar enquanto procura o par que combina. Um país bom tem de ter uma imprensa consciente de que a denúncia leviana e banal cobre de suspeitas de leviandade qualquer denúncia que se faça.

 

Um país bom, concluiria, exige uma imprensa que tem e aplica como regra a não violação do segredo de justiça. Quanto mais regra for essa regra, mais o genuíno e insubstituível jornalismo de investigação dispõe de condições para a furar com consequência. Porque um país bom tem profundo respeito pelos deveres de sigilo e leva, portanto, muitíssimo a sério qualquer denúncia.  

 

Não é o caso do Brasil, onde a devassa na imprensa é pão nosso de cada dia. Mas há meritosas e melindrosas excepções. Em plena campanha presidencial, a revista Veja trouxe a público o esquema de corrupção que esteve (ainda estará?) instalado na Petrobras e que está a ser investigado pela justiça que lá chegou ao puxar o fio de um outro esquema, de branqueamento de capitais.

 

Independentemente das conclusões a que se chegue e do grau efectivo de impunidade que venham a merecer os culpados (veja-se o que se passou com o "mensalão"), o caso Petrobras tem de ser conhecido no mundo inteiro. Porque a dar crédito (e não há razões para não dar) às declarações de Alberto Youssef, o cambista ("doleiro") que geria e lavava parte do dinheiro desviado da estatal que vale hoje em bolsa metade do valia há quatro anos, quem governa o país há 12 anos e acaba de vencer as eleições mudou - ou pelo menos, ajudou muito a mudar - o paradigma da crónica corrupção no país. 

 

Não se trata apenas de uma questão de volumes (embora também esses pareçam inéditos). O que o "doleiro" denuncia é a morte dessa ideia ainda muito viva de que o Estado é geralmente um ente passivo vulnerável às fraquezas tão humanas de alguns dos seus dirigentes e funcionários que trocam favores por ofertas de dinheiro de poderosas empresas do sector privado. "As empresas, principalmente as grandes, ficavam reféns. Ou participa [no esquema de subornos] ou não tem obra", diz Youssef (pode ouvi-lo dizer isto à 1h27m do seu depoimento aqui no Youtube, em resultado de numa estrondosa quebra do sigilo). 

 

Não há grande dúvida de que, neste caso, o corruptor activo e passivo era a estatal Petrobras - ou quem mandava nela - que impunha a extorsão de subornos como condição para as empresas lhe fornecerem serviços, e obrigava as Camargo Corrêas e as Odebrechts e muitas outras menos poderosas e conhecidas a desviarem, ao que parece 3% do valor facturado pelas obras, para os bolsos dos "agentes políticos". 

 

E quem mandava na Petrobras? Além do seu presidente e directores - um deles, Paulo Roberto Costa, também já preso e igualmente em processo de delação premiada como Youssef - figuras externas, entre as quais o tesoureiro do Partido dos Trabalhadores, João Vaccari Neto, diz o "doleiro".

 

A revista Veja afirma ainda ter tido acesso a um outro depoimento de Yousseff (ainda sem rasto no Youtube) em que o delator acusa o ex-presidente Lula da Silva e a recém-reeleita presidente Dilma Rousseff de saberem de todo o esquema da Petrobras. A possível comprovação dessa denúncia pode vir a ter consequências políticas e institucionais gravíssimas, mas pouco acrescentará à percepção de que o que se passa no Brasil é a apropriação de empresas do Estado por grupos políticos para quem, mais do que para eventual enriquecimento pessoal ou financiamento ilícito partidário, a corrupção serve como instrumento de poder - de perpetuação no poder.

 

Frase feita no Brasil, com aplicação comprovadamente válida em muita autarquia lusa, é a complacente "rouba mas faz". Mas aqui não é só roubo, é também extorsão; e não é só extorsão, é negação das regras do livre mercado e, mais grave, é corrosão dos alicerces da democracia. "Um ambiente de corrupção não deixa crescer em liberdade. (...) [Enquanto] o pecado e a tentação são contagiosos, a corrupção é proselitista", advertia o Papa Francisco quando era apenas Jorge Bergoglio, na Buenos Aires de 2005.

 

A defesa da democracia e da liberdade está hoje nas duas mãos da comunicação social e exige um jornalismo inconformado, informado e ao serviço de um país bom. Já a imprensa calhandreira é a melhor amiga de todo o tipo de corrupção - no Brasil, em Espanha ou aqui em nosso redor, onde o colapso do colosso GES nos passou, e em boa medida ainda passa, lá ao largo.

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