Opinião
O caimão
"De onde vem todo este dinheiro?" é a pergunta que perpassa, de modo quase obsessivo, o filme de Nani Moretti sobre Silvio Berlusconi. A pergunta fica no ar mas, a dada altura, o dinheiro cai, literalmente, sobre a cabeça do futuro primeiro-ministro itali
A imagem ocorre a propósito do comendador Joe Berardo, que partilha com Berlusconi alguns atributos. Um deles é a opacidade sobre a origem da sua fortuna. O outro é a atracção pelo negócio dos media, a que Berardo também sucumbiu mas que entretanto vendeu, com as habituais mais-valias. Num ponto não coincidem: enquanto Berlusconi se virou para a política, o comendador preferiu ser "mecenas" de arte moderna.
Berardo já passou por várias fases. Já comprou empresas, que entretanto passou a gerir, e depois vendeu. Foi o que fez nos jornais, por exemplo. Mais recentemente concentrou-se nos investimentos em bolsa, em algumas das "blue chips" nacionais, onde tem aplicados mais de 600 milhões de euros. Mas não perdeu o gosto pelas incursões hostis, que ele sabe que acabarão por ser dinheiro em caixa. Que o digam João Rendeiro, que o teve como sócio nas águas Frize, ou a família Guedes, que com ele convive agora numa sociedade "holding" de controle da Sogrape.
Ganhar dinheiro não é pecado. Pecado pode ser a forma como se ganha dinheiro. Ora como Joe Berardo – o homem que se veste sempre de preto sem que se saiba porquê, como consta na sua biografia na Wikipedia – só é discreto no vestuário, o seu comportamento dá muito nas vistas e chamou as atenções do "polícia" do mercado.
Que passou a estar atento ao ciclo das suas declarações de que está numa determinada empresa para ficar, para vender a seguir na primeira oportunidade. A questão é demonstrar se as declarações de Berardo representam uma manipulação do mercado, contribuindo objectivamente para fazer subir as cotações, de que vai tirar proveito mais tarde.
É matéria de difícil ou quase impossível prova, mas lá que existe um padrão nas intevenções do comendador, lá isso existe. E quando existem demasiadas coincidências, há razões para desconfiar.
O "modus operandi" de Joe Berardo pode não ter nada de ilegítimo. Não é crime ser especulador financeiro. E se Berardo usa a comunicação social para passar a sua mensagem, a comunicação social também o usa a ele para bater a concorrência, vender jornais ou tempo de antena.
A verdade é que o sucesso do comendador suscita invejas e o seu estilo predador deixa um rasto de inimigos. Como não nasceu em berço de ouro e cultiva um estilo controverso, Berardo é um alvo fácil de maledicência.
Também discutível é o veículo que utiliza para o investimento em bolsa. Ao fazê-lo através da sua fundação, reconhecida como instituição de solidariedade social, Berardo tem direito a um conjunto de benefícios fiscais, nomeadamente à isenção de impostos sobre mais-valias, condicionada à sua aplicação na própria fundação. Mas como não há ninguém que fiscalize a forma como os dinheiros são aplicados, a situação configura uma espécie de paraíso fiscal.
Que o Governo – este e todos os outros que o antecederam, pelo menos desde António Guterres – pactue com esta situação, sem clarificar o regime legal das fundações, só não é motivo de escândalo porque já nada escandaliza neste país à beira mar plantado.