Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
Pedro Santos Guerreiro psg@negocios.pt 08 de Abril de 2008 às 13:59

A reforma no prego

Saber que o número de resgates de PPR disparou no primeiro trimestre pode parecer apenas mais um reflexo da crise económica e financeira. Nada disso. Este é um indicador avançado da desgraça. Só não vê quem não quer.

  • ...

Ler ou escrever notícias sobre o estado da economia está a tornar-se um exercício monocórdico de desventura. O bom resultado do défice orçamental alumia fracamente o túnel da redução do crescimento económico, aumento da inflação, do desemprego, das desigualdades, da volatilidade dos mercados mobiliários e da queda dos imobiliários. Essa catadupa de estatísticas tem dois efeitos: por ser catadupa, banaliza a má notícia; por ser estatística, torna-se abstracta. Ora, o resgate massificado dos PPR não é uma coisa nem outra. É começar a rapar o fundo do baú.

Resgatar PPR é vender activos de longo prazo, pedir de volta o dinheiro que se foi amealhando e pagar caro por isso, não só pelas elevadas comissões de resgate, mas sobretudo porque (tirando algumas excepções) é preciso devolver ao Estado o benefício fiscal antes recebido. Pagar mais no IRS.

Contudo o que é notícia não é apenas ter subscrições líquidas que passaram de positivas para negativas (mais gente a vender PPR do que a comprar). Isso é preocupante, mas o segundo semestre de 2007 já o indiciava. É a dimensão que assusta: o saldo negativo deste primeiro trimestre é 274 vezes maior do que o saldo positivo do mesmo período do ano passado. Duzentas e setenta e quatro!

Era óptimo pensar que todos estes portugueses desataram a ler o “Investidor Privado” às segundas-feiras e, informados sobre a miséria que pagam a maioria dos PPR, estivessem a vender para reinvestir em activos mais crepitantes. Desgraçadamente, é mais verosímil que estejam a obter liquidez para pagar passivos.

A situação financeira de muitas famílias está a desmoronar-se por causa do aumento das taxas de juro, agravado por salários estagnados, subida do desemprego e, em muitos casos, pela pressão retroactiva sobre as pequenas empresas de que essas famílias são donas (primeiro foi o Fisco a espremer o sumo da laranja, agora é a Segurança Social que anda atrás das raspas).

Os PPR são activos de longo prazo. Antes de os liquidarem, estas famílias já se endividaram até ao limite, já anteciparam o recebimento dos subsídios de férias (há quem em Março já tenha recebido o subsídio de Natal), já renegociaram o que puderam, baixando “spreads”, consolidando dívidas, estenderam créditos até à terceira idade (em Portugal os bancos já aceitam extensão até aos 80 anos; em Espanha já se fazem contratos que transitam “post mortem” para os filhos). Nada seria melhor para as carteiras dos portugueses que uma descida das taxas de juro, o que a subida da inflação europeia faz descrer.
 
Já só falta fazer uma de duas coisas – ou ambas: mudar de vida ou vender o que resta. O estudo da semana passada sobre rendimentos das famílias mostra como ganhámos hábitos de vida que não podemos pagar e fazêmo-lo sacrificando bens essenciais: poupamos na comida para gastar em viagens. Esses dados eram de 2006 e é provável que já haja menos gente de sapatos brancos em Janeiro (o que, diz o adágio, é “sinal de pouco dinheiro”). A quem já mudou de hábitos (o que custa muito mais do que parece), restam vender os últimos activos, a casa, o carro.

Não é fatalismo, é a materialização do endividamento de toda a economia. Como diz António Borges, “o facto de estarmos a ir buscar ao estrangeiro, todos os anos, oito ou 10% do PIB em endividamento adicional não parece preocupar ninguém”. Pois preocupem-se: os problemas de liquidez e de solvabilidade não são exclusivo da alta finança. Os portugueses percebem cada vez melhor do que trata a crise financeira: trata deles mesmos.

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio