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05 de Junho de 2018 às 14:00

A linha traçada na areia por Mattarella

A decisão de Mattarella significa que os eleitores não podem questionar a permanência no euro? Qual é a margem resultante para a escolha democrática? Estas são questões fundamentais para todos os cidadãos europeus.

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Uma profunda crise política irrompeu em Itália desde a recusa do presidente Sergio Mattarella de nomear o eurocéptico Paolo Savona como ministro da Economia e Finanças no governo de coligação proposto pelos líderes do Movimento 5 Estrelas (M5S) e da Liga, os dois partidos anti-sistema que venceram as eleições de Março. Savona havia defendido abertamente a preparação de um "plano B" para uma saída da moeda única, e Mattarella argumentou que a sua nomeação poderia ter levado precisamente a esse resultado.

 

A decisão de Mattarella provocou um verdadeiro frenesim. O líder do M5S, Luigi Di Maio, pediu que o presidente fosse afastado do cargo, mas depois retirou o pedido. Matteo Salvini, da Liga, pediu novas eleições, que seriam, segundo ele, um referendo sobre a liberdade ou a escravidão de Itália. E em França, Marine Le Pen, líder da extrema-direita que esteve na corrida à presidência francesa no ano passado com a promessa de deixar o euro, denunciou aquilo que chamou de "golpe de Estado".

 

Esta não é a primeira vez que a pertença ao euro se torna uma questão política importante. Na Grécia, em 2015, foi, pelo menos implicitamente, parte do debate sobre a aceitação das condições da assistência financeira. Em França, no ano passado, Le Pen e Emmanuel Macron debateram explicitamente esse tema durante a campanha presidencial. Mas esta é a primeira vez que o euro foi a origem directa de uma disputa legal sobre a nomeação de um governo.

 

A subida repentina dos juros das obrigações soberanas reflectiu a ansiedade nos mercados financeiros. Mas, acima de tudo, a crise levanta uma questão de interpretação. A decisão de Mattarella significa que os eleitores não podem questionar a permanência no euro? Qual é a margem resultante para a escolha democrática? Estas são questões fundamentais para todos os cidadãos europeus.

 

Mattarella foi explícito em relação às suas motivações. Ele não se opôs ao direito dos italianos de questionarem a permanência no euro, mas argumentou que isso requeria um debate aberto, baseado numa análise séria e profunda, e que a questão não havia sido levantada na campanha eleitoral. Como o primeiro-ministro indigitado Giuseppe Conte e os líderes dos dois partidos se recusaram a propor qualquer outro candidato para o cargo, o presidente concluiu que o seu dever constitucional era recusar a nomeação.

 

Ao fazê-lo, Mattarella traçou uma linha separando as escolhas constitucionais das escolhas políticas. A sua lógica era que as escolhas políticas podem ser feitas livremente por um governo que comanda uma maioria parlamentar, e que o presidente não tem o direito de questionar tais escolhas. As escolhas constitucionais, pelo contrário, exigem um tipo diferente de procedimento decisório - que assegure que os eleitores estão adequadamente informados sobre as possíveis consequências da sua decisão. À falta desse debate, pensou Mattarella, o dever do presidente é preservar o status quo e impedir que uma escolha consequente seja impulsionada pelas expectativas autocriadas do mercado.

 

Por princípio, essa distinção faz muito sentido. Em praticamente todas as democracias, as constituições protegem os direitos humanos fundamentais, definem a natureza do regime político e atribuem responsabilidades aos vários níveis de governo. Estas disposições não podem - felizmente - ser alteradas por uma maioria simples de votos no parlamento. As constituições podem ser alteradas, é claro, mas muitas vezes só de forma lenta, e sempre através de uma maioria qualificada ou, em alguns países, através de um referendo. Esta inércia dá aos cidadãos uma garantia de que as suas preferências profundas serão mantidas.

 

Isto levanta duas questões. Primeiro, quais são os assuntos verdadeiramente constitucionais? Na Europa, a pertença à UE faz parte da lei fundamental de muitos países. A saída não pode ser decidida pelo parlamento através de um procedimento ordinário. Mas o âmbito constitucional é mais amplo: legalmente falando, todas as disposições dos tratados da UE estão dentro dele. E é aí que o problema começa. Seria obviamente absurdo opor-se a um debate político sobre as disposições do Tratado da UE relativas, por exemplo, à pesca ou às telecomunicações, ou mesmo ao quadro orçamental. Essas provisões deveriam pertencer à legislação ordinária (definir essa distinção de forma mais clara era um dos objectivos do fracassado tratado constitucional de 2005). Mas, em vez de fornecer uma delineação precisa, a fronteira legal entre provisões constitucionais e ordinárias cria confusão política. É totalmente compreensível que os cidadãos não tenham uma ideia clara do que pertence a qual categoria.

Segundo, que tipo de procedimento decisório deve ser aplicado a escolhas verdadeiramente constitucionais? O artigo 50.º do Tratado de Lisboa, como vimos, permite à UE decidir como gerir a decisão do Reino Unido de sair do bloco regional. Mas a maioria dos países não tem um artigo na sua própria constituição que defina como decidir se permanece ou não na UE ou no euro. Kenneth Rogoff, de Harvard, apelidou de "roleta russa para repúblicas" o facto de o Reino Unido se ter baseado num referendo de maioria simples para acabar com uma parceria de 55 anos, porque o procedimento não incluiu os controlos e equilíbrios que essa decisão consequente deveria ter exigido.

 

Enquanto a pertença à UE e ao euro gerou um amplo consenso, estas distinções só tinham interesse para os juristas. Não é mais o caso, e o debate sobre estas questões não deverá terminar tão cedo. Por isso mesmo, é tempo de fazer da distinção entre compromissos europeus genuinamente constitucionais e não constitucionais uma parte explícita da ordem política dos nossos países.

A linha divisória do presidente italiano está correcta em princípio: porque a moeda comum é uma instituição social fundamental, pelos laços com os países parceiros que ela envolve, e pelas consequências financeiras, económicas e geopolíticas de uma possível saída, a pertença ao euro deve pertencer ao reino constitucional. Mas a postura de Mattarella teria sido mais facilmente aceite se tivesse sido explicada desde o início. O facto de a sua decisão só ter sido anunciada quando irrompeu um conflito entre a presidência e os líderes da maioria parlamentar criou dúvidas sobre a sua legitimidade e ofereceu aos seus opositores uma oportunidade de reivindicar autoridade moral.

 

A tarefa vital que a Europa enfrenta é conciliar o direito dos cidadãos de fazerem escolhas radicais com a necessidade de garantir que decisões que conduzam a perturbações constitucionais sejam sujeitas a deliberações públicas suficientes, e suficientemente informadas, que resultem numa expressão inequívoca e coerente da vontade das pessoas. A UE e o euro não devem ser prisões constitucionais; nem devem estar sujeitos a decisões imprudentes. Atingir o equilíbrio certo exige procedimentos que contem com a legitimidade exigida.

 

Jean Pisani-Ferry, professor na Hertie School of Governance em Berlim e na Sciences Po em Paris, é membro do think tank Bruegel.

 

Copyright: Project Syndicate, 2018.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria
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