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02 de Março de 2014 às 21:05

George Soros: Apoiar os progressos da Ucrânia

A Ucrânia, com o seu capital humano de elevada qualidade e com a sua diversificada economia, é um destino de investimento potencialmente atractivo.

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Na sequência de um crescendo de violência aterradora, a sublevação ucraniana teve um resultado surpreendentemente positivo. Contrariamente às expectativas racionais, um grupo de cidadãos armados com não mais do que bastões e escudos de protecção feitos de caixas de papelão e tampas de latas do lixo esmagou uma força policial que disparava com munições reais. Houve muitas baixas, mas os cidadãos levaram a melhor. Este foi um daqueles momentos históricos que deixam uma marca duradoura na memória colectiva de uma sociedade.

 

Como é que tal coisa foi possível acontecer? A mecânica quântica tem como pilar a teoria do princípio da incerteza, de Werner Heisenberg, e oferece uma metáfora que se adequa à situação. Segundo Heisenberg, os fenómenos sub-atómicos podem manifestar-se como partículas ou ondas; da mesma forma, os seres humanos podem alternar entre comportarem-se como partículas individuais ou como componentes de uma onda maior. Por outras palavras, a imprevisibilidade dos acontecimentos históricos, como o que aconteceu na Ucrânia, tem a ver com um elemento de incerteza na identidade humana.

 

A identidade das pessoas é composta por elementos individuais e por elementos de unidades maiores às quais elas pertencem, e o impacto das pessoas sobre a realidade depende de quais elementos dominam o seu comportamento. Quando os civis se lançaram num ataque suicida contra as forças de segurança em Kiev, a 20 de Fevereiro, o seu sentido de representantes da “nação” superou grandemente a preocupação com a sua mortalidade individual. O resultado foi a passagem de uma sociedade profundamente dividida, à beira de uma guerra civil, para um sentido de unidade sem precedentes.

 

Até que ponto é que essa unidade vai permanecer é algo que dependerá de como a Europa responder. Os ucranianos demonstraram a sua fidelidade a uma União Europeia que está, também ela, dividida, com a crise do euro a colocar os países credores e os devedores uns contra os outros. É por isso que a União Europeia foi categoricamente atropelada pela Rússia nas negociações com a Ucrânia sobre um Acordo de Associação.

 

Fiel à forma, a União Europeia sob liderança da Alemanha, ofereceu muito pouco e exigiu demasiado à Ucrânia. Agora, depois do compromisso do povo ucraniano em estreitar os laços com a Europa, alimentado por uma insurreição popular bem sucedida, a UE, de par com o Fundo Monetário Internacional, está a preparar um pacote de resgate de milhares de milhões de dólares para salvar o país do colapso financeiro. Mas isso não será suficiente para sustentar a unidade nacional de que a Ucrânia precisará nos próximos anos.

 

Criei a Fundação Renaissance na Ucrânia em 1990 – antes da independência do país. A fundação não participou na recente sublevação, mas foi uma defensora daqueles que foram alvo de repressão das autoridades. A fundação está agora pronta para apoiar o profundo desejo dos ucranianos de criarem instituições democráticas resilientes (acima de tudo, um sistema judiciário independente e profissional). No entanto, a Ucrânia precisará de ajuda externa que só a União Europeia poderá dar: competências de gestão e acesso aos mercados.

 

Na extraordinária transformação das economias da Europa Central na década de 1990, as competências de gestão e o acesso aos mercados resultaram dos vastos investimentos por parte de empresas alemãs e de outras companhias sedeadas na União Europeia, que integraram os produtores locais nas suas cadeias de valor globais. A Ucrânia, com o seu capital humano de elevada qualidade e com a sua diversificada economia, é um destino de investimento potencialmente atractivo. Mas para se perceber esse potencial é preciso um melhor ambiente para os negócios em toda a economia e dentro de cada sector – especialmente no que diz respeito ao combate à corrupção endémica e à fraca aplicação das leis, factores que afastam tanto os investidores nacionais como estrangeiros.

 

Além de incentivar o investimento directo estrangeiro, a União Europeia poderá ajudar dando formação aos gestores das companhias locais e ajudando-os a desenvolver as suas estratégias empresariais, com prestadores de serviços remunerados por participações accionistas ou participações nos lucros. Uma maneira eficaz de implementar esse tipo de apoio a um grande número de empresas seria conjugá-lo com linhas de crédito concedidas por bancos comerciais. Para incentivar a participação, o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (BERD) poderia investir em empresas, de par com os investidores locais e estrangeiros, tal como fez na Europa Central.

 

Desta forma, a Ucrânia abriria o seu mercado doméstico aos bens fabricados ou montados por subsidiárias total ou parcialmente detidas por empresas europeias, ao mesmo tempo que a União Europeia incrementaria o acesso ao mercado para as empresas ucranianas, ajudando-as a integrarem os mercados globais.

 

Espero e confio que a Europa sob a liderança alemã se mostre à altura dos acontecimentos. Há vários anos que defendo que a Alemanha deve aceitar as responsabilidades e obrigações da sua posição dominante na Europa. Neste momento, a Ucrânia precisa de um equivalente moderno ao Plano Marshall, através do qual os Estados Unidos ajudaram a reconstruir a Europa após a Segunda Guerra Mundial. A Alemanha deve desempenhar hoje o mesmo papel que os EUA desempenharam naquela altura.

 

Não devo, contudo, terminar sem fazer uma advertência. O Plano Marshall não incluiu o bloco soviético, reforçando assim a divisão da Guerra Fria na Europa. Uma replicação da Guerra Fria penalizaria fortemente a Rússia e a Europa e, acima de tudo, a Ucrânia, que está situada no meio das duas regiões. A Ucrânia depende do gás russo e precisa que os seus produtos tenham acesso aos mercados europeus; deve ter boas relações com ambos os lados.

 

Também neste aspecto a Alemanha deve assumir a liderança. A chanceler Ângela Merkel deve comunicar com o presidente Vladimir Putin de modo a garantir que a Rússia é uma parceira, não uma opositora, no processo de renascimento da Ucrânia.

 

George Soros é presidente do Soros Fund Management e autor do livro intitulado “The Tragedy of the European Union”.

 

Direitos de autor: Project Syndicate, 2014.
www.project-syndicate.org 

Tradução de Carla Pedro

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