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22 de Outubro de 2014 às 20:08

A arma defeituosa do BCE

Com a inflação na Zona Euro teimosamente em trajectória descendente, cresce a pressão sobre o Banco Central Europeu para fazer "alguma coisa" de forma a evitar um cenário de deflação. Esse "alguma coisa" é geralmente entendido como a compra de activos em massa, ou flexibilização quantitativa (QE, na sigla inglesa). Mas será essa a solução para o problema?

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Até agora, a discussão tem seguido os padrões nacionais facilmente previsíveis: os países credores não se opõem à deflação, porque aumenta o valor real do seu investimento, ao passo que a carga financeira dos países devedores se torna mais pesada. 

 

Numa economia fechada, a cada crédito corresponde uma dívida. Mas consideremos países individuais: alguns têm uma grande dívida externa, enquanto outros mantêm uma posição de credores.

 

Os Estados Unidos e a Alemanha estão em extremos opostos da escala credor/devedor. Os Estados Unidos, que beneficiam do "privilégio exorbitante" de emitir dívida na sua própria moeda, têm défices em conta corrente há mais de 30 anos. A dívida externa total dos residentes dos Estados Unidos (a maioria da qual é em dólares americanos) supera os 7 biliões de dólares. Isto significa que qualquer redução nas taxas de juros dos Estados Unidos seria benéfica para o país como um todo, em relação aos países credores, como a Alemanha, onde o rendimento decorrente dos juros cairia. 

 

Dentro da Zona Euro, onde até recentemente as contas externas eram quase equilibradas, surgiu um espectro de credor/devedor semelhante, com a Alemanha e a Holanda num extremo, e grande parte do Sul da Zona Euro no outro. Isso explica, em parte, tanto a postura hostil adoptada na imprensa financeira alemã em relação à flexibilização quantitativa como os apelos cada vez mais desesperados dos países sobreendividados da periferia por mais acção por parte do BCE.

 

Na Zona Euro, no entanto, o QE é uma resposta questionável a esses apelos. A flexibilização quantitativa é um instrumento especial que é usado quando as taxas de curto e médio prazo de um banco central já estão em zero, e se quer baixar as taxas de juro de longo prazo. Isto significa que o QE só pode ser eficaz em economias em que as mudanças nas taxas de juro de longo prazo tenham um papel importante no sector privado.

 

Não é o caso da Europa, onde a maioria do investimento é financiado através de empréstimos bancários, que normalmente não têm maturidade de longo prazo - geralmente menos de cinco anos - porque os próprios bancos não têm um financiamento seguro a longo prazo. Além disso, as taxas cobradas sobre esses empréstimos interesses não estão associadas às taxas de mercado, mas ao custo de refinanciamento do banco, que já está perto de zero.

 

Na Zona Euro, é improvável que taxas de juro mais baixas a longo prazo para os títulos do governo melhorem as condições de financiamento do sector empresarial e impulsionem o investimento. Por outro lado, nos Estados Unidos, uma proporção muito maior do investimento é financiado pela emissão de títulos, que podem ter um prazo mais longo do que os empréstimos bancários. Além disso, esses títulos estão cotados como spreads sobre a curva de rendimento dos títulos públicos, o que significa que o QE tenha um impacto imediato nos custos de financiamento das empresas.

 

Para as famílias, o principal impacto da descida das taxas de juro é sentido nas hipotecas. Mas a maior parte do Sul da Europa depende, essencialmente, de taxas flutuantes. Isto implica que o QE não chegaria, por exemplo, às famílias espanholas, cujas hipotecas estão indexadas a taxas de curto prazo, que já estão próximas de zero.

 

Nos Estados Unidos, as famílias têm uma opção de pré-pagamento das suas hipotecas se as taxas de juro caem. Além disso, as hipotecas estão geralmente titularizadas. Isto significa que uma queda na taxa a que se podem vender lotes de hipotecas no mercado pode ter um forte impacto na despesa das famílias, porque taxas de longo prazo mais baixas levam, normalmente, a ondas de refinanciamento hipotecário, deixando as famílias com despesas mensais mais baixas - e, portanto, mais rendimento disponível.

 

Quando um banco central compra grandes quantidades de títulos de dívida, todos os preços dos activos, incluindo a habitação, tendem a aumentar. Também aqui os Estados Unidos, onde os preços das casas mais altos estimulam o consumo, são um exemplo enganoso para a Europa. As taxas de ocupação de proprietários são elevadas nos Estados Unidos, e o sistema financeiro permite às famílias extrair o "home equity" (a diferença entre o valor do activo e o saldo da dívida) a um custo relativamente baixo, através de uma segunda hipoteca ou refinanciando toda a hipoteca. 

 

Isso não é possível em grande parte da Europa, e especialmente na Alemanha, onde os limites da relação empréstimo-valor permanecem conservadores, o refinanciamento é caro, e a maioria dos bancos desaprovam qualquer tentativa de capitalizar a "home equity" para financiar umas férias ou um carro novo. Além disso, os preços das casas e as rendas mais altas distribuem o rendimento das famílias mais pobres (que normalmente alugam) para as famílias mais ricas (que possuem as casas). Mas os pobres têm uma propensão muito maior para gastar do que os ricos. Um "boom" imobiliário numa nação de inquilinos pode levar a um consumo agregado mais baixo.

 

Assim, as diferenças na estrutura financeira influenciam profundamente o esforço para evitar a deflação. Embora o QE funcione numa economia devedora com um sistema financeiro flexível como os Estados Unidos, numa economia credora com um sistema financeiro conservador, pode sair o tiro pela culatra. Este, e não o medo de que o BCE possa acabar a comprar títulos de governos não confiáveis, é o verdadeiro argumento contra o QE na Zona Euro. 

 

© Project Syndicate, 2014.

www.project-syndicate.org

Tradução: Rita Faria

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