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Tratado internacional pode condicionar Governo nas rendas da energia

Para o governo português, o TCE [Tratado da Carta da Energia] pode vir a constituir um significativo entrave legal à alteração das condições garantidas aos produtores eléctricos (CAE, CMEC, PRE, etc.)

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Assinado em Lisboa a 17 de Dezembro de 1994, é o primeiro tratado internacional multilateral a regular as condições de protecção do investimento estrangeiro num determinado sector da actividade económica. Trata--se do Tratado da Carta da Energia (TCE), que entrou em vigor em Abril de 1998 e obriga presentemente 51 estados, incluindo todos os países da União Europeia. Pelo seu carácter inovador, tanto no plano político como no jurídico, já foi considerado "um milagre do período pós-Guerra Fria". Mas, para o governo português, o TCE pode vir a constituir um significativo entrave legal à alteração das condições garantidas aos produtores eléctricos (CAE, CMEC, PRE, etc.).

O tratado é a peça mais importante do chamado Processo da Carta da Energia, iniciado em 1991 e que desempenhou um papel histórico no acesso das nações ocidentais ao potencial energético dos países resultantes do desmembramento da União Soviética. É um documento complexo, com 14 anexos, 7 declarações e 22 interpretações que um secretariado, baseado em Bruxelas, se esforça por fazer cumprir.

No essencial, o TCE assenta em três pilares: comércio, transporte e investimento. Neste último domínio, o tratado prevê um exaustivo conjunto de disposições tendentes à promoção e protecção do investimento estrangeiro no sector energético. No TCE cabe tudo, desde a energia nuclear à eólica, passando pelo petróleo, gás, carvão e até a biomassa. E tanto são protegidos os investimentos na produção, como os feitos nas redes de transporte, distribuição ou retalho. Quanto aos investidores, as regras do tratado abrangem pessoas singulares ou colectivas, quer sejam investidores directos, quer indirectos, ou mesmo meros financiadores ou detentores de direitos de propriedade intelectual.

Isto, já de si, vai para além do que um normal tratado de protecção de investimento bilateral poderia prever. Sucede, porém, que o tratado confere aos investidores estrangeiros garantias de protecção e segurança dos seus investimentos que abrangem o tratamento mais favorável dado a nacionais e até a terceiros não nacionais (cláusula de nação mais favorecida).

Culminando estas garantias de direito internacional, o TCE confere a esses investidores a possibilidade de impugnar em sede de arbitragem internacional as decisões do estado português que violem os seus direitos, ainda que os respectivos contratos não prevejam tal mecanismo. Isto é, um investidor estrangeiro que veja, por exemplo, o valor das tarifas de electricidade previamente negociadas com o governo português alteradas unilateralmente por meio de portaria (ou até mesmo de um decreto) poderá demandar o Estado, independentemente de esse direito lhe ser reconhecido no respectivo contrato. E tal direito poderá ser invocado até por uma empresa portuguesa como a EDP se o respectivo investimento tiver sido estruturado através de uma sociedade-veículo com sede noutro país que seja parte do tratado.

Quer isto dizer que o governo português não tem outro remédio senão assistir impotente à resistência das operadoras em verem as suas remunerações renegociadas? Claro que não. A jurisprudência internacional está repleta de casos em que teorias como a alteração das circunstâncias e a impossibilidade ou extrema dificuldade de cumprimento – "hardship", "duress" e outras – foram invocadas para justificar a renegociação ou acção unilateral do Estado. Há inúmeras decisões arbitrais em que foi entendido que o interesse público justificava o afastamento de garantias dos investidores estrangeiros e a inobservância de direitos semelhantes aos contidos no TCE. A Argentina é apenas um dos países que têm invocado tais razões jurídicas, aliás, com assinalável êxito.

Acresce que no caso das rendas pagas aos operadores eléctricos em Portugal existem directrizes consagradas em documentos de relevância internacional (memorando da troika e outros) no sentido de o Governo dever renegociar o seu valor. Não se tratando obviamente de regras de direito comunitário, tais directrizes servirão, quando menos, como causa de justificação para a eventual violação, por parte do governo português, das normas previstas no histórico Tratado da Carta da Energia.

Advogado

Membro do "Energy Charter

Legal Advisory Task Force"

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