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In Memoriam de Francisco Mantero: África, amor e morte

Falava da sua finitude com uma desafetação desconcertante. “Viciado em viagens”, parecia encarar a morte como apenas mais uma fronteira. Do lado de lá estaria outra esperança, outro desenvolvimento, o continente eterno do amor que não lograra encontrar em África.

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Segundo a mitologia grega, Orfeu, o poeta e músico, quando é colocado perante a morte da sublime Eurídice, vai implorar junto do próprio Hades, senhor da morte, o regresso da amada à vida. O rei dos mortos, o mais rico de todos os deuses, porque nenhum outro tem mais súbditos, ainda hesita e põe Orfeu à prova. Mas acaba por não lhe fazer a vontade. Orfeu, destroçado, descobre que o amor nada pode contra a morte.

Alguns séculos depois, surgiu Cristo. Quando Lázaro morre, Jesus sente a dor lancinante da perda do amigo. Na sua infinita misericórdia, decide restituir-lhe a vida. Diz o Evangelho que para Cristo o amor é mais forte do que a morte.

Francisco Mantero, que subitamente nos deixou há algumas semanas, era um homem de fortes convicções cristãs. Um homem para quem o amor tudo vencia. Seu amigo desde os bancos da faculdade, há mais de meio século, sei do que falo. O Xico conhecia de cor o meu agnosticismo atávico. Mas, como uma vez me disse, “Mais importante do que as tuas convicções é o teu comportamento”. Era assim o Francisco Mantero.

Nada o apaixonava mais do que África, seus incontáveis segredos e intemporais tragédias. O Xico sofria com as dores dos africanos. Em quase meio século de atividade empresarial, associativa e de consultoria no continente, tinha apurado aquele sentimento de impotência que advém de se conhecer a riqueza cultural dos povos africanos e a pobreza política das suas elites. Em São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Moçambique, mas também em Paris ou Lisboa, lutou contra a inércia, o preconceito, o afropessimismo. Parecia inspirado pela perseverança que observava na conduta dos mais humildes. Deleitava-se com o humor transgressor nas frases dos resistentes. África estava-lhe no sangue.

O bisavô, D. Francisco Mantero y Velarde, descendente de uma família italiana de Génova que se fixara próximo de Cádiz, em Espanha, onde viria a nascer, fez fortuna nas roças de São Tomé e de Angola, corria o século XIX. O avô, Carlos Mantero, desaparecido em 1980, foi o primeiro português licenciado pela Universidade de Columbia (Nova Iorque) e o único que desempenhou as altas funções de presidente da Câmara de Comércio Internacional, em Paris. Deputado na Assembleia Nacional de Salazar, representou o círculo de São Tomé e diz-se que não raro as suas opiniões chocaram com as do chefe do governo.

Francisco Mantero foi tudo o que um profissional “africanista” pode querer ser no nosso país: presidente da ELO; fundador e secretário-geral do Conselho Empresarial da CPLP; administrador da SOFID; curador da Fundação Portugal-África; conselheiro para as questões africanas na Associação Comercial de Lisboa, na CIP e em diversas empresas portuguesas. No plano internacional, desempenhou múltiplas funções de relevo, a mais importante das quais terá sido porventura o seu último cargo, como consultor da OCDE para as questões africanas. O desenvolvimento, a cooperação e a internacionalização eram os seus territórios de eleição.

Nos últimos anos, o Xico tinha ganho uma ligeira curva no tronco, como que se inclinando já para a terra. Falava da sua finitude com uma desafetação desconcertante. “Viciado em viagens”, parecia encarar a morte como apenas mais uma fronteira. Do lado de lá estaria outra esperança, outro desenvolvimento, o continente eterno do amor que não lograra encontrar em África.

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