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O exemplo inspirador da advogada Kim Motley

O lugar do advogado é na primeira linha de defesa dos que não podem ou sabem defender-se.

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Tem 43 anos, três filhos e foi Miss Wisconsin (EUA) em 2004. Hoje é a única advogada estrangeira autorizada a pleitear nos tribunais do Afeganistão. Kimberley Motley, americana, filha de pai afro-americano e de mãe sul-coreana, chegou a Cabul há 10 anos e tornou-se rapidamente na mais respeitada defensora dos direitos humanos naquele país. A fama desta advogada é tal que a realizadora dinamarquesa Nicole Nielsen Horaeyi fez um filme sobre a sua vida, Motley's Law, vencedor, entre outros, do Prémio do Grande Júri no Festival NYC DOC 2015. Não cobra um cêntimo às pobres vítimas que representa no labiríntico sistema de justiça afegão. Mas se um qualquer ex-primeiro-ministro for acusado de apropriação indevida de fundos e quiser contratar os seus serviços, como por exemplo aconteceu na Malásia, os honorários de Kim Motley deixá-lo-ão certamente um bocadinho menos rico...

Numa chuvosa manhã de outono, sentei-me a conversar com a advogada no lobby de um hotel de Berlim onde decorria o Forum Global para o Direito de Interesse Público. Kim Motley tinha feito uma intervenção sobre o seu trabalho no Afeganistão e eu estava ali para abordar as vantagens comerciais dos serviços pro bono. Talvez a tenha impressionado com a afirmação de que mesmo os mais cínicos advogados deviam fazer trabalho pro bono pela simples razão de que isso lhes confere uma relevante vantagem competitiva junto de clientes e colegas. Motley fez questão em sublinhar que há 10 anos se mudara para o Afeganistão porque lhe ofereceram um excelente salário e ela tinha dívidas para pagar. E que hoje não poderia prestar serviços jurídicos gratuitos se não fossem as receitas dos clientes mais endinheirados. Fiquei rendido àquela sinceridade.

Uma das cinco filhas de uma família modesta, Kim Motley começou a trabalhar quando tinha apenas 13 anos. Financiou os seus estudos através de empregos precários e de um empréstimo bancário, acabando por licenciar-se em 2003. Depois de trabalhar cinco anos como defensora oficiosa, Motley não hesitou em alistar-se como formadora de advogados afegãos quando o Departamento de Estado abriu um concurso para esse efeito. Nunca antes tinha saído dos Estados Unidos!

Como se pode ver no filme que retrata a sua aventura, Kim Motley deve ter parecido irreal aos olhos dos mal preparados magistrados afegãos. Uma mulher negra, que se recusava a usar véu e que falava de igual para igual com quem lhe aparecia à frente. Além disso, conhecia o Corão tão bem como os juízes; utilizava, quando necessário, o calão ali reservado aos homens; e parecia ignorar o medo ou a contenção submissa. Mas o seu êxito nos casos mais diversos, representando réus nacionais ou estrangeiros, no Afeganistão, como depois em Cuba, na Bolívia ou no Uganda, foi avassalador. E em poucos anos tornou-se um ícone da advocacia internacional.

A Lei de Motley é muito simples: o Direito existe para proteger. Seja uma púbere rapariga afegã que o pai tem de entregar ao velho pretendente para saldar uma dívida equivalente a 100 dólares, seja um ex-governante corrupto acossado pelos novos donos do poder, a lei está lá para proteger os mais vulneráveis. E o lugar do advogado é na primeira linha de defesa dos que não podem ou sabem defender-se. A máquina da justiça é opaca, complexa e por vezes aterradora. Ajudar quem cai nas suas malhas, ainda que justificadamente, é um dever de humanidade.

Kim Motley é, para além de advogada célebre, uma empreendedora de notáveis recursos. Em 2016 lançou o projeto Laws4Me, uma base de dados que pretende ser o repositório das leis de todos os países sobre direitos humanos. Um ano depois criou The Identity Project, a iniciativa que visa conferir bilhete de identidade a centenas de milhões de mulheres indocumentadas (cerca de 2 milhões apenas nos EUA) indocumentadas que, segundo o Banco Mundial, existem em todo o mundo. Já este ano anunciou The Disrupters, uma série de banda desenhada que narra as aventuras de um grupo de advogados que viaja pelo mundo procurando levar a justiça a lugares tão inóspitos quanto a Coreia do Norte ou a República Democrática do Congo.

O exemplo inspirador de Kim Motley devia ser ensinado nas escolas de direito portuguesas. E não apenas por razões de filantropia. A advogada, que fundou em 2016 a empresa Motley Consulting International, de que é CEO seu marido, o gestor Claudiare Motley, acredita no que designa por economia dos Direitos Humanos. Ela acha que toda a arquitetura jurídica internacional corre risco de erosão e até de colapso enquanto a dignidade humana não estiver no centro das preocupações dos líderes mundiais. Para Kim Motley "as leis têm de ser devolvidas às pessoas". Doutra forma, a humilhação e o desejo de vingança continuarão a crescer nos bancos de ódio mais ou menos populistas que, nos últimos anos, têm surgindo um pouco por todo o lado. n

Este artigo foi redigido ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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