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19 de Janeiro de 2007 às 13:59

Saddam, o ditador genocida, transformado em mártir sunita

Na altura, antes da decisão anunciada de julgar Saddam Hussein no Iraque, por um tribunal iraquiano, defendi que existiam todos os motivos e as vantagens para que o ditador fosse julgado, imparcialmente, ...

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Na altura, antes da decisão anunciada de julgar Saddam Hussein no Iraque, por um tribunal iraquiano, defendi que existiam todos os motivos e as vantagens para que o ditador fosse julgado, imparcialmente, no Tribunal Penal Internacional por crimes contra a Humanidade. O decorrer do julgamento, o tempo, a sentença e a forma como foi executada veio a dar razão.

Saddam não foi julgado por todos os seus crimes, nem pelo uso de armas químicas contra aldeias curdas. Depois do assassínio de alguns defensores a julgamento centrou-se nos seus crimes contra os xiitas. A sua execução televisionada e difundida macabramente por algumas televisões teve um impacto inesperado, em especial no Mundo Árabe onde os xiitas viram nela a sua vingança e os sunitas a sua humilhação, os curdos ficaram injustiçados. As ondas de choque pelo Mundo Árabe estão a tornar-se uma ameaça aos chamados regimes árabes moderados, dominados por sunitas, alguns deles em países de maioria xiita. Os xiitas, esses estão imparáveis. Ganhas as eleições no Iraque, conquistado o poder democraticamente nada indica que estejam em maré de cooperação com os americanos para por termo à actividade das milícias xiitas que atacam desde há algum tempo, de forma indiscriminada as comunidades sunitas que por seu turno reforçam as suas milícias agora, não para atacarem o poder, mas para se defenderem dos xiitas.

A captura vivo, sem luta, de um homem acabrunhado escondido num buraco, foi uma das batatas mais quentes dos americanos. A sua entrega às autoridades iraquianas seria inevitável. A criação de um tribunal especial iraquiano para o julgar foi porém um dos grandes erros dentro do grande erro que foi a invasão do Iraque quando Hans Blix ainda estava no terreno e duvidava da existência de armas de destruição massiva.

A acção de Saddam na guerra contra o Irão, tão apoiada pelos EUA e pelos europeus, como pelos países do Golfo, todos financiadores de Saddam e fornecedores de armas, o uso de armas químicas contra as tropas iranianas levantou apenas os protestos da Cruz Vermelha Internacional e de algumas ONG’s. O massacre de curdos iraquianos, denunciado por fotos e vídeos expostos internacionalmente mereceu uma condenação vaga. Afinal Saddam era o homem que lutava contra o Império do Mal - os religiosos iranianos que haviam tomado o poder do Xá Reza Palevi. O ditador de Bagdad confundiu as alianças de circunstancia e, necessitando de pagar as dívidas de guerra invadiu o Kuwait, há muito cobiçado, para se aproveitar do seu petróleo. Erro crasso. O mapa do Médio Oriente é suposto ser imutável, não pode afectar o equilíbrio geoestratégico nem os interesses económicos ocidentais. A resposta de Bush (pai) não se fez esperar. Bush não foi até ao fim e não depôs Saddam, limitou-se a coarctar-lhe os movimentos contra xiitas a Sul e curdos a Norte. Aconselhou-o um velho amigo e colaborador: James Baker com o apoio do general Brent Scowcroft e Colin Powell.

Mas o jovem herdeiro de George H. Bush (pai) enterneceu-se com as informações sobre armas de destruição massiva – que os serviços secretos vieram mais tarde a afirmar tratarem-se apenas de suposições. Exaltou-se com a alegada falta de iniciativa da equipa da ONU chefiada por Hans Blix que teimava em não encontrar essas armas. Contra o parecer dos conselheiros do pai, e entusiasmado pelo aparente sucesso no Afeganistão na acção punitiva contra a Al Qaeda e os talibãs que a apoiavam, George W. Bush invadiu o Iraque lançando-se numa guerra interminável que foi sugando vidas americanas e só o ano passado matou quase quatro dezenas de iraquianos, segundo um recente relatório da ONU.

Após a sua captura haveria, como defendiam discretamente alguns europeus, múltiplas razões para o julgamento ser em Haia. A verdade é que seria atirar para o Tribunal Penal Internacional mais uma batata quente e não é certo que este estivesse muito interessado nela. Entre Slobodan Milosevic e Saddam Hussein não havia diferenças criminais de fundo, daí a legitimidade do TPI.

Washington, que efectivamente dava as cartas no Iraque, nunca reconheceu o TPI e apoiou os novos senhores de Bagdade, xiitas que viveram décadas sob o jugo sunita de Saddam na criação de um tribunal especial para julgar o deposto ditador e antigo aliado.

O desfecho era inevitável. Saddam não poderia ser condenado a prisão perpétua no Iraque, nem o seu meio-irmão, nem nenhum dos que se seguirão nestes julgamentos que não levam até ao fim nem às últimas consequências o julgamento dos crimes cometidos pelos antigos senhores de Bagdade. Todos tinham (têm) de ser condenados à morte. A execução num dia santo para os sunitas – perseguidos em todo o Iraque – foi a última peça da vingança xiita.

Jacques Chirac tenta dialogar com o Irão procurando evitar que as sanções aprovadas pelo Conselho de Segurança se tornem em motivo de nova aventura militar de um Presidente que até agora se mostrou incapaz de aceitar as recomendações do relatório Baker-Hamilton, que aponta para um diálogo no Iraque, sem excluir a pressão militar. Bush reforçou a presença naval no Golfo, uma ameaça directa ao Irão, cada vez mais receado pelos regimes sunitas vizinhos. Claro que existem as maiores dúvidas da capacidade de abertura de uma nova frente americana. O Presidente francês, em final de mandato pretende deixar uma marca e falar com o Irão sobre o Líbano, mas ao fazê-lo está a reconhecer que Teerão, apoiante do Hezbollah, a milícia xiita que combateu Israel recentemente, depois de ter ganho uma representação eleitoral de peso. Uma solução no Líbano, com apoio iraniano, dá uma palavra a Teerão, mas pode atenuar as divergências e a rivalidade cada vez mais violenta entre xiitas e sunitas.

No Iraque, será bom não esquecer que existem ainda outros actores à espera de justiça: os curdos, sem os quais as tropas americanas teriam tido grandes dificuldades no Norte. Para os curdos o apoio contra Saddam foi por um lado uma recusa das violências a que foram sujeitos, mas recorda as violências a que continuam sujeitos na Turquia e na antiga URSS.

A crise do Médio Oriente está a agravar-se e a maleabilidade que Chirac procura mostrar não seria totalmente descabida, mau grado as pressões para que o Presidente francês não dialogue com os religiosos iranianos que voltaram ao poder e teimam num projecto nuclear extremamente duvidoso e perigoso.

O espalhar de um confronto ao longo de linhas religiosas poderia redesenhar o mapa de uma região energeticamente estratégica. Agora tudo se está a passar não em nome de Alá mas alegadamente em nome da dignidade e segurança sunita face à maioria xiita, especialmente a iraniana que, desde a antiga Pérsia sempre teve tendências dominantes sobre a região. O desafio secular entre Bagdade e Damasco pode continuar agora com Teerão por detrás de Bagdad.

Diplomacia inteligente, paciente e punhos de renda, com porta-aviões ao largo mas fora do horizonte visível parece bem ser o único caminho para uma solução definitiva ou pelo menos pacífica e inteligente. Sem esquecer claro a necessidade de melhorar as condições de vida das populações em geral e especialmente sem confundir dois combates: um contra o terrorismo, outro pela pacificação da região.

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