Opinião
"Contra o Fanatismo" (*)
Mãe! Mãe!! a América caiu!". Estou no Porto em 2006, numa instituição de Ensino Superior Artístico, e uma jovem que não tem ainda 20 anos descreve-me, gesticulando em mimese pré-histérica
"A essência do fanatismo reside no desejo de obrigar os outros a mudar"
Amos Oz, in "Contra o Fanatismo" (2002), co-edição ASA/Público, 2007.
(tradução de Henrique Tavares e Castro)
Mãe! Mãe!! a América caiu!". Estou no Porto em 2006, numa instituição de Ensino Superior Artístico, e uma jovem que não tem ainda 20 anos descreve-me, gesticulando em mimese pré-histérica, com o telemóvel na mão, o gozo sádico da sua apoteose, partilhada ao telefone com a mãe, no dia da barbárie de 11 de Setembro. O seu prazer é obsceno. Acabado de sair de um aula sobre Brecht, não consigo deixar de pensar no nível de infecção sarcástica a que esta criatura se rendeu, procurando vingança em vez de justiça, e de que poderá alguma vez servir-lhe a Arte, ela que tem esta visão dos Homens. Abril de 2012: incapaz de negociar, titubeando em comunicados que a comunicação social "toma" como factos e transcreve à letra alimentando mais polémica, o Executivo Camarário do Porto ridiculariza-se pública e notoriamente, ao carregar de forma inaudita e despropositada sobre um colectivo que ocupou um edifício que a Câmara abandonara há cinco anos, (re)usando-o agora para fins comunitários. Outro equívoco ideológico, mais uma vez sem qualquer discussão sobre o essencial, desta feita em versão burguesia autoritária, ou lá o que é. Pergunto-me de que pode alguma vez servir-lhes o Homem, eles que têm esta visão da Arte. Houve tempos em que não havia lugar para os cidadãos no projecto Portugal; hoje é a classe política que não está à altura de Portugal - não lhe pertence, não sabe de que somos feitos.
Ficamos "desconcertados", é o termo, de cada vez que vemos o poder político - de quem se pede racionalismo, objectividade, responsabilidade - comungar com as mais elementares formas de anti-civismo e defesa da barbárie a todo e qualquer custo; nós não conhecemos o fanatismo. Muitos de nós achamos - sobretudo depois dos atentados do 11 de Setembro de 2001 - que o fanático é um egoísta maníaco, porventura porque entendemos o egoísmo como a semente primeira da crueldade em massa, da injustiça. Errado, segundo Oz; o fanático é altruísta, faz tudo pelos outros, inclusive o "sacrifício" de os Governar - Salazar era "expert" neste cinismo nos seus discursos aos famintos e analfabetos. O fanatismo medra politicamente na superioridade moral e no uso do Poder como forma de a consagrar e disseminar; o fanático trabalha sempre para os outros com altruísmo persuasivo, elaborando a sua "teoria social" até ao ponto em que o discurso "kitsch" - a vulgar e sentimentalona cópia da cultura erudita, destinada a vender em massa - possa perseverar como carrasco da autodeterminação e do individualismo liberal. O fanático - diz Amos Oz, que viu as entranhas dos seus compatriotas espalhadas pelas calçadas de Jerusalém por bombas lançadas por crianças - é uma mistura disfuncional entre o sentimentalismo exacerbado - muitas vezes revivalista - e a completa ausência de imaginação. O Fado e a Revista, por exemplo, têm sido sistematicamente chulados assim. O fanático é uma das mais generosas criaturas, o grande altruísta: a sua essência reside em obrigar os outros a mudar, salvar-nos a alma dos nossos vícios, livrar-nos do tabaco, da tourada, das ideias, dos pecados ou do voto. O fanático ama-nos de verdade, até ao nosso holocausto, se for isso que é preciso para a nossa "salvação". O fanático violenta, porque sem imaginação, só com medo, o imprevisível é sempre obscuro.
Quem ama também atraiçoa; só quem ama, pode verdadeiramente atraiçoar. Diz Amos Oz e diz a Bíblia, sobre Judas Iscariotes. Contra o fanatismo, liberdade individual, responsabilidade colectiva. Contra o fanatismo, Democracia.
(*) "Contra o Fanatismo" é um livro de Amos Oz (n.1939) composto por três ensaios, resultantes da sua observação no terreno das consequências do fanatismo. Nascido numa Jerusalém dilacerada, combatente na Guerra dos Seis Dias, fundou o movimento "Peace Now": A sua obra escrita - muita dela resultante de palestras em que participa por todo o mundo de forma incansável - encontra-se traduzida em português quase na íntegra. Foi prémio "Goethe" em 2005 e Prémio Príncipe das Astúrias (Letras) em 2007.
Amos Oz, in "Contra o Fanatismo" (2002), co-edição ASA/Público, 2007.
(tradução de Henrique Tavares e Castro)
Mãe! Mãe!! a América caiu!". Estou no Porto em 2006, numa instituição de Ensino Superior Artístico, e uma jovem que não tem ainda 20 anos descreve-me, gesticulando em mimese pré-histérica, com o telemóvel na mão, o gozo sádico da sua apoteose, partilhada ao telefone com a mãe, no dia da barbárie de 11 de Setembro. O seu prazer é obsceno. Acabado de sair de um aula sobre Brecht, não consigo deixar de pensar no nível de infecção sarcástica a que esta criatura se rendeu, procurando vingança em vez de justiça, e de que poderá alguma vez servir-lhe a Arte, ela que tem esta visão dos Homens. Abril de 2012: incapaz de negociar, titubeando em comunicados que a comunicação social "toma" como factos e transcreve à letra alimentando mais polémica, o Executivo Camarário do Porto ridiculariza-se pública e notoriamente, ao carregar de forma inaudita e despropositada sobre um colectivo que ocupou um edifício que a Câmara abandonara há cinco anos, (re)usando-o agora para fins comunitários. Outro equívoco ideológico, mais uma vez sem qualquer discussão sobre o essencial, desta feita em versão burguesia autoritária, ou lá o que é. Pergunto-me de que pode alguma vez servir-lhes o Homem, eles que têm esta visão da Arte. Houve tempos em que não havia lugar para os cidadãos no projecto Portugal; hoje é a classe política que não está à altura de Portugal - não lhe pertence, não sabe de que somos feitos.
Quem ama também atraiçoa; só quem ama, pode verdadeiramente atraiçoar. Diz Amos Oz e diz a Bíblia, sobre Judas Iscariotes. Contra o fanatismo, liberdade individual, responsabilidade colectiva. Contra o fanatismo, Democracia.
(*) "Contra o Fanatismo" é um livro de Amos Oz (n.1939) composto por três ensaios, resultantes da sua observação no terreno das consequências do fanatismo. Nascido numa Jerusalém dilacerada, combatente na Guerra dos Seis Dias, fundou o movimento "Peace Now": A sua obra escrita - muita dela resultante de palestras em que participa por todo o mundo de forma incansável - encontra-se traduzida em português quase na íntegra. Foi prémio "Goethe" em 2005 e Prémio Príncipe das Astúrias (Letras) em 2007.