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Nicolau do Vale Pais 11 de Dezembro de 2015 às 09:36

A Tragédia francesa (há alturas em que a economia não explica nada)

É que, do ponto de vista dos sufrágios, tem sido nos países mais ricos que se têm verificado os crescimentos maiores dos partidos de extrema-direita.


"Por mais que vos possa parecer ingénuo, fico espantado que possamos usar a linguagem tanto para amar e perdoar, como para torturar, odiar, destruir e aniquilar.'
George Steiner

Poderíamos dizer que a crescente legitimação política da xenofobia nasce da miséria social, mas essa explicação, na sua fragilidade, explica bem os limites da sociologia enquanto forma de interpretar a política. Alguma nascerá, sim. Mas essa relação causa-efeito é, no mínimo, subjectiva. É que, do ponto de vista dos sufrágios, tem sido nos países mais ricos que se têm verificado os crescimentos maiores dos partidos de extrema-direita (a Suíça é disso exemplo taxativo). Do outro lado do espectro político e geográfico, o "frentismo" (também ele de matriz populista) que Syriza, Podemos e agora António Costa quiseram inaugurar na zona sul da Europa, encontra no estouro recente do Chavismo - para não falar da austeridade que Tsipras entretanto se viu obrigado a impor aos seus eleitores - seríssimo aviso.

Aonde pára a Social Democracia, cujas interpretações e realizações várias - incluindo, claro está, as de centro-esquerda - fizeram da Europa um farol do mundo? A resposta mais evidente passa por dizer que está defunta às mãos do "financismo" que se apoderou de toda a teoria económica no continente, com a Alemanha e a França à cabeça do desvario do projecto de paz que lideraram. Mas a verdade é que tal não explica tudo; se assim fosse, seria nos países onde o efeito perverso e cínico da especulação mais se fez sentir na última década - isto é, nos países do sul da Europa - que surgiriam as respostas mais visíveis e violentas; e, no entanto, a Frente Nacional é francesa, um país do G-8.

O filósofo e ensaísta George Steiner (n.1929) - por sinal, um americano nascido em França - tem uma obra extensa e polémica que assenta no estudo das relações entre linguagem, literatura e sociedade. Embora a extrapolação seja de minha lavra, em "A Morte da Tragédia" (1961), Steiner dá-nos pistas que nos podem conduzir a uma análise mais crua, mas mais eficaz, do problema central em toda a sua plenitude - o da perda de influência (económica, social e cultural) como o motor mórbido dos sentimentos nacionalistas que alimentam a xenofobia. Foi assim com o III Reich, que também nasceu sob a influência propagandística da "recuperação" do potentado perdido. E se há cultura que perdeu território no projecto europeu, a todos os níveis, materiais e imateriais, é a cultura francesa.

Diz Steiner, a propósito de uma análise da tragédia neo-classicista francesa de Racine e Corneille, que, para um francês, estas obras estariam sempre entre as obras-primas da literatura universal; no entanto, fora da francofonia, elas não criaram escola. Mais adiante, Steiner cita Maulnier quando este diz que "a poesia francesa está mais distante dos elementos universais do folclore e do vernáculo, do que qualquer outra." (Gil Vicente, por exemplo, pode ser visto como um autor diametralmente oposto neste particular). Posto isto, diz Steiner que se é verdade que "somos todos descendentes de Voltaire", também não deixa de ser verdade que aquilo que os franceses entendem como sublime se circunscreve ainda no orgulho nacional mais do que no património universal. A dependência directa do contexto político e social de que as grandes tragédias francesas dependem para serem entendidas na sua plenitude civilizacional e performativa, justificará em parte que o seu eco popular não chegue perto do de Shakespeare.

De Gaulle, diz Steiner, falou aos franceses, no fim da II Grande Guerra, como Corneille em "Horace". E eles perceberam-no. Será esta a tragédia francesa, a de se saber brilhante, mas não celebrada? Há alturas em que a economia não explica nada.

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