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Nicolau do Vale Pais 04 de Dezembro de 2015 às 10:05

"Energia Atómica? Não, Obrigado!" (acerca da memória de um autocolante)

Anos 80: ainda se lembra de um Algarve que, por ser das únicas zonas de afluência de estrangeiros num país ainda muito pouco cosmopolita, era cenário de "excentricidades" que não se viam em mais lado nenhum?


Anos 80: ainda se lembra de um Algarve que, por ser das únicas zonas de afluência de estrangeiros num país ainda muito pouco cosmopolita, era cenário de "excentricidades" que não se viam em mais lado nenhum? Lembro-me, por exemplo, de por lá ver os primeiros "motards" ou os viajantes em "pão-de-forma" - a mítica carrinha da Volkswagen, vinda de uma época em que as emissões ainda não eram assunto. Em muitos desses veículos, havia um luzidio e simpático sol vermelho, estampado sobre um fundo amarelo. Vinha acompanhado da frase "Energia Atómica? Não, obrigado". Lembrei-me dele, durante estes dias da Cimeira COP21.

O "sol sorridente", como é hoje carinhosamente designado, é o símbolo internacional do Movimento Anti-Nuclear. Foi criado nos anos setenta do século passado e, por volta da década de oitenta, já era ubíquo por todo o mundo (Algarve incluído!). A BBC News classificou-o (em reportagem de 2005) como "um do símbolos não-publicitários mais reconhecidos por todo o planeta"; nessa mesma reportagem, representantes da própria indústria nuclear surgiam a reconhecer o poder do logótipo. Entre crachás e autocolantes, foram produzidos mais de 20 milhões de unidades em todo o mundo, em mais de quarenta línguas diferentes, como forma de financiar o trabalho de diversos grupos e associações anti-nuclear.

O "sol sorridente" foi desenhado por uma activista dinamarquesa chamada Anne Lund. Do ponto de vista da comunicação da mensagem, o seu desenho é simples e eficaz: ao colocar a questão de forma directa, acompanhada da resposta elegante e cordial, o objecto estimula de imediato o diálogo, contextualizando assim a questão como respeitante a todos, e não só a militantes das causas. Não há hoje qualquer dúvida de que a consciência global que temos dos perigos da energia nuclear - que Chernobyl (1986) ou Fukushima (2011) vieram tragicamente enfatizar - está umbilicalmente ligada à transversalidade cívica que estes movimentos souberam fomentar. E é preciso que se lembre que esse trabalho tem a sua credibilidade política fundamentada nas visões modernas de sociedade que os Partidos Ecologistas germanófilos há muito souberam sofisticar, nomeadamente na Alemanha, Suíça e Áustria. (*)

Numa altura em que o desastre das emissões de carbono vai perversamente reintroduzindo o nuclear (que é livre de CO2, o que pouco importa se considerarmos os "contras" mais do que evidentes) no discurso de Estado do mundo desenvolvido, seria bom pensarmos um pouco sobre um problema cuja natureza não pode terminar no contestarismo, e nas suas reconhecidas ineficácias em termos de programa político (leia-se, compatibilização de interesses cívicos e económicos). Quando surgiu o "sol sorridente", o mundo vivia sob uma outra ameaça permanente, a do holocausto nuclear, alimentado por uma guerra que se queria fria, já que as suas consequências devastariam agressores, além de agredidos. Hoje, o problema das emissões tarda em ser devidamente enquadrado (se não mesmo, incluído!) no discurso económico. Não deixa de ser planetariamente surpreendente que assuntos e problemas cuja consciência está estabelecida de forma transversal à sociedade global não tenham eficácia em termos políticos, nem que fosse para angariar votos. Suspeito que o problema comece na fractura que o discurso culpabilizante e acusativo fomenta na sua turva tendência para olhar mais para as causas do que para os problemas em si, e acabe na falsa ilusão de poder que fenómenos como a Internet criaram. 


(*) diga-se, em abono da verdade, que a consciência ecológica também tem sido, sobretudo na Alemanha, bandeira de todo o espectro partidário, incluindo os Partidos do arco da Democracia Cristã.

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