Opinião
Portugal-Brasil
As relações entre portugueses e brasileiros têm sido ao longo dos mais de 500 anos de História comum bastante complexas.
Desde o «achamento» das terras de Vera Cruz - para utilizarmos a expressão de Pero Vaz de Caminha - até ao Brasil da emigração para Portugal, desenvolveram-se sentimentos recíprocos contraditórios que misturaram paixão, despeito, atracção, repulsa, admiração, rivalidade, que nunca deixaram, noentanto, de se exprimir num quadro de afectividade própria que se sobrepôs aos altos e baixos das relações, dando sentido à ideia de países irmãos e, sobretudo permitindo alimentar o papel de retaguarda que cada país tem desempenhado em relação ao outro, ao longo de sucessivas gerações e das vicissitudes históricas que tiveram de enfrentar.
Esta dualidade de sentimentos está bem presente na História mais recente das relações entre os dois países, explicando quer a euforia própria de um segundo «achamento»com que as empresas portuguesas se lançaram na aventura do investimento directo no Brasil, na segunda metade dos anos 90, quer a desilusão que em muitos casos se seguiu quando afinal constataram que as coisas não eram tão fáceis quanto previam nem os brasileiros eram tão ingénuos ou parecidos com os portugueses quanto se pensava. De certa forma a recente visita do primeiro-ministro português ao Brasil deixou-se enredar nesta onda de desilusão padecendo de preparação e de ambição nos objectivos e, simultâneamente, acomodando-se no argumento de que as gerações que olhavam de forma privilegida as relações entre os dois países estão a desaparecer e que os dois países estão condenados a separarem-se tendo em conta os interesses regionais especícos e a diferença de ambição e de peso relativo na cena global.
Não se pense que com isto estamos a querer dizer que a visão pessimista ou simplesmente limitada do potencial de desenvolvimento das relações luso-brasileiras é apanágio exclusivo do lado português. Muito pelo contrário, do lado brasileiro verifica-se uma simetria de posições, com a agravante de estas serem acompanhadas, em muitos casos, de um nacionalismo estreito e exarcebado que confunde a consciência da sua origem e das raízes da sua identidade e dificulta, ao mesmo tempo, o reconhecimento do papel que o Brasil poderá desempenhar no contexto mais alargado do mundo que fala português. Expressão maior desta visão limitada e redutora da História e das suas realizações aconteceu na recente cimeira da CPLP em Bissau, com a ausência do Presidente brasileiro, que trocou o desafio da consolidação de uma base própria de afrmação de liderança a nível global por um papel de figurante deslumbrado na Conferência do G8 em Moscovo.
Recordo-me, a este propósito, da intervenção de uma responsável académica brasileira numa conferência económica realizada em Brasília em 2000, por ocasião das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil. A senhora, mestiça afro-brasileira, procurando ser simpática com a delegação portuguesa na qual eu me integrava, elogiava a bravura dos navegadores portugueses que, comandados por Pedro Álvares de Cabral e nas frágeis caravelas, se haviam aventurado no mar desconhecido para descobrirem um Brasil, de que ela se considerava uma herdeira legítima. Esquecia-se, simplesmente, de que o Brasil, mais do que uma descoberta ou um achado - para retomar a expressão de Caminha -, fora uma construção - uma construção económica, uma construção étnica, uma construção social, uma construção política. Provavelmente a primeira grande construção da globalização. E esquecia-se de que ela própria era um produto dessa construção.
Como todas as construções históricas, a construção da realidade brasileira não foi isenta de violência, de sangue, de arbitrariedades e ignomínias de toda a ordem, que até hoje perduram e em muitos aspectos se agravaram. Mas a identidade como povo, como Nação, como unidade cultural e política, devem-na, os brasileiros, a essa obra dos portugueses sem a qual, possivelmente, hoje o Brasil seria uma realidade inexistente ou um mosaico de países à semelhança do resto da América Latina.
Esta visão redutora de grande parte das elites brasileiras encontra a sua contrapartida na forma alienada como a generalidade da população olha para a sua História e para o lugar do Brasil no mundo. E também aqui vem-me á memória uma anedota contada por um colega brasileiro, igualmente preocupado com o desenvolvimento das relações luso-brasileiras, em que um surfista carioca, interrogado sobre o que pensava que se encontrava do outro lado do mar, respondia, com toda a naturalidade e fundamentado no mais forte senso comum, que era Niterói!
Como é óbvio, não é fácil mudar comportamentos e muito menos mentalidades e referências culturais que se consolidaram ao longo de sucessivas gerações, com a passividade, quando não com a própria contribuição activa de parte significativa das elites políticas e culturais dos dois países. Mas os interesses objectivos e, sobretudo, a evolução recente das relações económicas entre os dois países, justificam que se deixem de lado preconceitos e rivalidades infantis para se pensar em profundidade num novo modelo de relacionamento bilateral que potencie o aproveitamento do espaço de identidade comum, no contexto da economia global actual e sem deixar de valorizar a afirmação de cada um nos respectivos espaços de integração regional.
No caso português este relacionamento adquire, nas condições actuais, uma importância maior na medida em que se têm vindo a acentuar nos últimos anos as limitações e os constrangimentos de uma inserção internacional exclusivamente centrada na opção europeia, tornando-se premente a construção de alternativas que introduzam maiores graus de liberdade nas relações económicas e permitam encontrar respostas mais eficazes aos fenómenos de periferização acrescida que se têm vindo a manifestar. Embora não seja a única alternativa que se oferece a Portugal, parece óbvio que o relacionamento com o Brasil e, numa perspectiva mais global, com o conjunto dos países que falam português, constitui uma via a explorar, quer enquanto espaço de cooperação interna, quer enquanto espaço comum de afirmação na economia global.
Parece que um dos resultados concretos da visita do primeiro-ministro português a Brasília foi o acordo no empenho comum de comemorar o bi-centenário da ida de D. João VI e da corte portuguesa para o Brasil, na sequência da primeira invasão francesa em 1807.
Apesar das circunstâncias trata-se, sem dúvida, de um dos períodos mais originais e mais férteis da História comum dos dois países e um caso único na História mundial em que a capital de um país é transferida para uma sua colónia, elevada por essa razão à condição de Reino Unido. À estadia da corte portuguesa no Brasil e ao afluxo de grande parte da elite portuguesa nesse período deve o Brasil grande parte do desenvovimento económico, social e político que haveria de conduzir á sua independência posterior, em 1822. E deve, também, Portugal, o desenvolvimento das condições que haveriam de favorecer a revolução liberal e a posterior tentativa de desenvolvimento económico e social do país que haveria de ficar conhecida como Regeneração.
Pela importância que este período teve na História dos dois países, a celebração conjunta pode ser um bom pretexto para uma reflexão aprofundada do estado das relações entre Portugal e o Brasil e uma oportunidade única para, com base na experiência do passado e na confrontação com a realidade actual, construir uma nova plataforma de interesses comuns e um novo modelo de relacionamento bilateral.
Fica, pelo menos, a nossa expectativa.