Opinião
Os olhos de seu menino
Rolinda se esquinava, esvaziando as curvas do corpo, qual pneu furado, esvaído no rodar da vida. O mar azul de Pemba, carregou-lhe o menino, redes abaixo, como se as águas quisessem acertar contas com os homens e Nini fosse a dívida cobrada.
Rolinda se esquinava, esvaziando as curvas do corpo, qual pneu furado, esvaído no rodar da vida. O mar azul de Pemba, carregou-lhe o menino, redes abaixo, como se as águas quisessem acertar contas com os homens e Nini fosse a dívida cobrada.
Rolinda se esgotava na incredulidade. Incapaz de aceitar o inaceitável. Que a mesma água que nos cala a sede e a fome, também pode roubar, em silêncio, o coração de mãe, rasgando ferida incicatrizável.
Nini tinha apenas sete anos quando o pai o levou, pela última vez, porta fora. Numa viagem de (des)sentido único. Ela ainda lhes escutava o tagarelar, carreiro abaixo, e o Boavida a puxar os brios ao menino:
– "Anda lá ó pingento! Isso tá p´ra hoje? Desengata-me as amarras do pontão!"
Rolinda assomou à porta, beijada pela maresia morna do finar de tarde, e viu seu menino a correr, descalço, no pontão escafiado.
– "Parece uma gaivota" – pensou ela, ternurenta, enquanto limpava à saia de capulana, as mãos emporcalhadas pela faina da janta. E prendia nos seus, por instantes, os olhos de seu menino.
Nini nascera assim, ser estranho, parecendo emprestado ao Mundo para curto existir. Quando nos olhava, a gente sentia-se despido na essência. Varado por bala sem chumbo, que nos estilhaçava as sucessivas demãos de máscaras existenciais.
Rolinda cabriolava emoções e razões para aqueles olhos de pérola negra, que a anzolavam desde a primeira mamada, levando-a a cobrir o peito, em reflexo de um pudor inesperado. Contra-natura. Como se o corpo de seu bebé fosse ponte para outros Mundos. Janela existencial, precária, por outro alguém rasgada.
Na tradição, pediu saber aos mais velhos e ao curandeiro. Não fosse Nini ser "xicuembo" (feitiço) de estranhas vontades. Mas as respostas desciam sempre por rua única.
Aquele – explicavam-lhe – era olhar de vida a curto prazo. Estrela emprestada em corpo de menino-anjo, para nos arrancar da periferia dos umbigos. Da vertigem de viver só para nós. Sem olhar. Sem importar com o espezinhar de tudo o que nos rodeia.
Rolinda ainda insistiu. Indagou se tinha remédio tal condição, de seu menino chegar já em despedida, vivendo às arrecuas, subtraindo-se ao Mundo antes de seus pais. Antes de sua mãe. E a resposta, mais uma vez, inundou-lhe as varandas do coração:
"Mamana! Teu existir é o de um viajante no deserto, que só água salgada carrega no cantil. Para ti será mortal mas, para os peixes, representa a vida."
Rolinda não percebeu a alegoria nas palavras e, muito menos, a profecia transportada. Mas, com o passar dos anos, Nini foi-se somando num menino, passarinho de pouco corpo mas atenção transbordante. Aquele olhar de gume afiado, que nos recortava as entranhas, e, depois, cada vez mais avulso, semeava reparos sábios. Impróprios de quem se estreia na viagem do existir.
Boavida emprestava-lhe silêncios, na esperança de, na ausência partilhada de palavras, entender seu menino. Mas enquanto os seus eram vazios de existências, sestas do pensar, nos silêncios de Nini fermentava-se vida.
Questionava-se o existir. Procuravam-se porquês. Contagiava-se a certeza de que nenhum de nós sabe mais, sobre nada, do que pinceladas de um cenário, em constante mutação. Desactualizado antes mesmo de o conseguirmos tocar, quanto mais dominar.
Naquele dia, o menino sonhou, ao sestar, que as palavras, escassas, de seu pai, o eram porque ele as guardava nas dobras das ondas, reservando-as para os peixes que assim atraía ao aninho em suas redes.
Quando mãe e filho anzolaram olhos, no despedir do barco, Rolinda sentiu um arrepio. Pareciam de peixe os olhos prantados em seu menino. Como se o cabritar da água fosse seu destino. E ela tudo, num repente, pressentisse.
O grito de seu homem, cortou-lhe o instinto:
– "Anda lá ó pingento! Isso tá p´ra hoje? Desengata-me as amarras do pontão!"
E ela largou as amarras, de seu menino.
Rolinda foi-se esquinando. Esvaziando as curvas do corpo como pneu furado, esvaído no rodar da vida, até que uma noite voltou a sonhar. Um peixe assomava do mar, repentinamente aveludado, com olhos de gente. De pérola negra. Como os de seu menino.
Rolinda desamarrou-se da capulana e nadou-lhe atrás, como se soubesse nadar. Como se isso não importasse. E não importava mesmo. Se aqueles eram, os olhos de seu menino.