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23 de Fevereiro de 2004 às 13:40

Os Eleitos

A reforma do sistema eleitoral constitui uma das mais evidentes e consensuais reformas que, a curto prazo, o país deveria experimentar.

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No estúdio, o jornalista ia avançando os motes. E Marcelo, superiormente dotado tanto em fina eloquência quanto em arguição astuta, fazia mais um comentário. Um desses comentários que meio país segue atentamente na TVI aos jantares de domingo.

Já não conseguirei precisar, porque o episódio terá umas semanas, mas terá ocorrido em Dezembro último. Perante o “eleito” dos comentadores políticos, o jornalista trouxera à baila uma dessas recentes sondagens de opinião em que políticos e instituições são apreciados quanto à sua popularidade.

Marcelo Rebelo de Sousa, imparável, continuava: Durão aguenta-se, mas o PSD desce enquanto o PS parece melhorar porque assim e porque assado... o PC está a subir, prenunciando que? e Sampaio parece continuar bem visto aos olhos dos portugueses, por isto e aquilo. Etc., etc. ´

É então que – e não vou garantir a fidedignidade nas palavras, porque só de memória retenho o episódio – o jornalista interrompe, tentando dar novo fôlego ao debate: “Mas, professor, a sondagem também denuncia que o Parlamento e os deputados sobem de popularidade! Como interpretar o facto?”

Aí, impiedoso, Marcelo dispara: “Ah, sabe, mas isso é normal. É sempre assim. É preciso ter em conta que, quando a sondagem foi feita, o Parlamento tinha acabado as suas férias de verão. E é sempre assim: quando os deputados vão de férias, o Parlamento sobe sempre nas sondagens.

Isso é quase uma lei, não é novidade alguma.” Sem prejuízo de reconhecer a finíssima e cínica ironia a que o comentador nos habituou, e sem enjeitar que eu próprio sorri com a deixa, alguns instantes depois, confesso, a constatação incomodava-me. Não porque não fosse correcta.

Infelizmente, de facto, não será, de todo, descabida. Mas porque o comentário escamoteava um dos maiores cancros do sistema político em Portugal. Na realidade, a Assembleia da República não tem, aos olhos dos portugueses, qualquer função útil.

Pelo contrário, qualquer sondagem de opinião dará a conhecer que os portugueses vêem o trabalho dos deputados e do seu parlamento como virtualmente inútil, confundindo os seus eleitos com meros funcionários das máquinas partidárias a que estão afectos.

Mais, pouquíssimos eleitores genuinamente diriam que os seus deputados defendem e sustentam os seus interesses e aspirações. Inacreditavelmente, porém, o parlamento e seus “eleitos” pelo povo popular objectivamente nada fizeram para que a sua imagem e a sua função no sistema democrático mudassem.

Na verdade, a reforma do sistema eleitoral e, nomeadamente, a revisão da lei aplicável às eleições legislativas sumiram do debate político. Há uns anos atrás, porém, o assunto era considerado – por todas as bancadas parlamentares – como uma necessidade da democracia portuguesa, como uma aspiração legítima dos portugueses, e como um instrumento fundamental de uma imperativa refundação do sistema político.

De facto, a reforma da lei eleitoral, e nomeadamente a criação de círculos eleitorais uninominais a par de um grande círculo de âmbito nacional foram, pura e simplesmente, “engavetados”. Pura e simplesmente, os políticos portugueses acharão que o país, o seu parlamento e a relação entre eleitos e eleitores está muito bem como está.

E que? em equipa que ganha não se mexe.

E o país continuou – e tudo leva a crer que a vida irá prosseguir – sem que o tema regressasse à agenda política. Acresce que, na própria comunicação social, o assunto parece não interessar a ninguém.

Aliás, também não espanta que, do encontro de cinco centenas de iluminados no Convento do Beato, a que se deu o rótulo de “Compromisso Portugal” tenham saído conclusões que não estabelecem a mais pequena referência a questões tão relevantes para o desenvolvimento da economia e para o aperfeiçoamento da democracia como a revisão da lei eleitoral, a descentralização de competências e instrumentos da administração central, a promoção do desenvolvimento regional ou a valorização de recursos naturais nacionais como a floresta, o clima, os recursos marítimos e pesqueiros, ou a definição de orientações de política energética que acentuem a opção pelas fontes renováveis.

Isto? apenas para citar algumas entre as múltiplas falhas que uma leitura atenta das mesmas conclusões não deixa de revelar. Porque, em todos estes domínios, o “Compromisso Portugal” mais se assemelha a um “Comprometer Portugal”?

A reforma do sistema eleitoral constitui uma das mais evidentes e consensuais reformas que, a curto prazo, o país deveria experimentar. É essencial que eleitores possam conhecer eleitos, e que estes respondam perante os primeiros.

Porque é imprescindível que os políticos sejam responsáveis e responsabilizados. Quem foge ao debate? Até quando?

PS - Miguel Cadilhe tocou, e muito bem, na ferida da descentralização, ao reabrir o debate sobre a instalação da sede da Agência Europeia de Segurança Marítima, propondo para o efeito uma cidade que não Lisboa, desde que dotada de recursos portuários e de uma universidade com saber na área – Aveiro, Porto, Angra ou Faro seriam exemplos.

O argumento governamental de que a decisão de sedear a AESM em Lisboa não pode ser alterada – porque até terá sido assumida pelo governo de Guterres – daria para rir, não fosse assunto muito sério.

Ficamos a saber que Durão Barroso afinal, deixou de pretender corrigir erros dos seus antecessores e que, no seu entender, a macrocefalia da capital está muito bem, e recomenda-se, e obrigado.

Já agora, onde estão os “eleitos” pelo PSD e PP por aqueles círculos eleitorais?

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