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Ricardo Cruz rcruz@europe.com 28 de Julho de 2006 às 13:59

Choque de titãs, Ano I

Eventos há cujo discretíssimo aniversário merecia bolo, uma velinha a mais e cânticos a alto e bom som.

A 21 de Julho cumpriu-se um ano desde que o Banco Popular da China (BPC) decretou uma revalorização instantânea de 2,06 por cento do yuan chinês face ao dólar norte-americano. Em simultâneo, o BPC anunciara então que o yuan passaria a flutuar em relação a um cabaz de moedas integrado pelas divisas com maior relevância nas transacções da China com o exterior. Nada mais foi então divulgado. Nas semanas seguintes, os analistas fervilhavam de ansiedade, procurando deduzir qual a composição desse cabaz e as proporções nele atribuídas a cada divisa.

Muitos tomaram aquele anúncio como um ‘marco histórico’. A notícia que vale por si. Afinal, os chineses haviam mantido o yuan indexado ao dólar durante mais de 10 anos (desde Janeiro de 1994) a uma paridade fixa de 8,28 yuans por dólar. Como o mais fervoroso dos crentes na fé, o BPC raríssimas vezes havia consentido que a cotação do yuan contra o dólar se desviasse dessa paridade central mais que duas ou três míseras centésimas. Isto a despeito do modo ‘ió-ió’ do dólar nos mercados cambiais.

Tecnicamente, o regime cambial do yuan configura um «pegging». É definida uma paridade central contra uma moeda ou um cabaz de moedas. Seguidamente, o banco central compromete-se a actuar como o guarda-redes que jamais consentirá que a sua baliza seja violada pela bola. Vai a todas. Compra e vende os dólares que forem necessários para manter a ‘baliza’ - i.e. a paridade fixa - inviolada. Em futebolês: não há penalty que entre. Imagina o leitor um guarda-redes maior que a própria baliza? Chama-se Banco Popular da China.

Desde o virar do século que muitos analistas alertavam para a circunstância de o «pegging» seguido pelo BPC conduzir a uma competitiva subavaliação do yuan. Nas vésperas do ‘marco histórico’ de 21 de Julho de 2005, académicos reputados sugeriam que o yuan estaria subavaliado entre 20 a 40 por cento face ao dólar. Na política, vários senadores - com destaque para Charles Grassley e Max Baucus, líderes da Comissão de Finanças do Senado dos EUA - vinham empreendendo, em crescendo de tom, a useira cruzada de ameaças de retaliação comercial, caso as autoridades chinesas insistissem no dolce fare niente. É que, nos entretantos, as estatísticas tinham passado a revelar que, em várias categorias de produtos, bem mais de metade do consumo dos americanos tinha por alvo o made in China. Primeiro, os brinquedos, o calçado desportivo, as malas de viagem, o vestuário leve. Mais recentemente, a tendência passara a abranger a electrónica de consumo, os semicondutores e o mobiliário.

Em 2005, o défice da balança corrente dos EUA ascendeu a 900 biliões de dólares, 6,5 por cento do PIB. Inversamente, a China registou um excedente global superior a 150 biliões de dólares, 6,3 por cento do PIB. Só que, em termos bilaterais, o excedente comercial da China sobre os EUA cifrou-se em quase 200 biliões de dólares.

Já em Abril último, a cimeira sino-americana entre George Bush e Hu Jintao fora precedida de toda a artilharia de pressões diplomáticas sobre os chineses, na ânsia de que estes cedessem e anunciassem medidas tendentes à correcção de desequilíbrios financeiros internacionais cuja gravidade não encontra registo pelo menos desde o termo da II Guerra Mundial.

Mas debalde. As expectativas saíram goradas desse conclave, a que alguns sugestivamente chamaram de «G2». Afinal, nos últimos cinco anos os EUA e a China têm sido as verdadeiras locomotivas da economia mundial. A Europa andou - e andará ainda - aos papéis consigo própria. E o Japão só agora dá sinais de abandono de um ciclo de estagnação e deflação que se arrastou por 15 anos.

No entretanto, o que sucedeu com o yuan neste ‘Ano I’? A 21 de Julho de 2005, a cotação caiu, de uma só vez, de 8,28 para 8,11 yuans por dólar. Um ano depois, o par transacciona agora a 7,98. Ou seja, uma ligeiríssima depreciação incremental de 1,6 por cento num ano.

A questão está longe de se confinar a uma disputa a dois, uma espécie de choque de titãs. A obstinada resistência chinesa à valorização do yuan tem tido enorme impacto nas economias vizinhas - Coreia, Malásia, Tailândia, entre outras. Concorrentes da China, estes países mostram-se relutantes em aceitar a valorização das suas moedas face ao yuan, já que isso implicaria aceitar perdas de competitividade a favor dos chineses. Portanto, há hoje um bloco asiático em braço-de-ferro com os americanos. E vários bancos centrais asiáticos estão predispostos, sempre que necessário, a comprar volumes massivos de dólares para obstar à valorização das suas moedas face ao yuan.

Por outro lado, não se trata de uma birra provocatória. Em boa verdade, a China precisa de um yuan consentâneo com o ritmo de crescimento dos últimos anos, entre 9 a 10 por cento ao ano, o que induziu uma taxa de investimento da ordem dos 45 por cento do produto - bem mais do dobro da registada em vários países da União Europeia. O que significa que a economia chinesa precisa de progredir na utilização da sua capacidade produtiva, sob pena de se expor ao risco de um colapso súbito. E isso só é possível por via da penetração exportadora no mercado global, apoiada num câmbio confortável.

Por fim, a história nem sempre é contada em todos os seus contornos. É que, a par de uma política cambial rígida, a China opera ainda sob severas restrições aos fluxos de capitais. Em particular, as aplicações no exterior são ainda fortemente condicionadas, quando não proibidas. Por exemplo, só a 14 de Abril último o limite máximo à compra de divisas por particulares foi aumentado de 8 para 20 mil dólares por ano. Acima disso, é crime e dá cadeia.

Mas uma liberalização ousada dos fluxos de capitais com o exterior teria um desfecho perverso a curto prazo. É que, enquanto a proporção de activos estrangeiros no portfolio desejado pelos agentes económicos chineses não fosse alcançada, o fluxo de saída de capitais da China induziria, muito provavelmente, a depreciação continuada do yuan nos mercados. Viria pior a emenda que o soneto.

Um amigo meu costuma dizer que se um chinês anuir que sim com a cabeça, só por acaso isso é indício de concordância. Afinal, cumpriu-se a 21 de Julho último um ano desde que o ‘guarda-redes’ chinês abriu uma nesga numa baliza por onde só uma bola de golfe parece conseguir passar. Não espanta que ainda não haja golos para os americanos.

Mas, caro leitor, cuidado com este futebol. Pode parece que não é nada connosco. Mas se uma crise financeira forçar uma desvalorização rápida e abrupta do dólar, poderemos acabar na valeta.

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