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Opinião
27 de Outubro de 2006 às 13:59

Bem prega Frei Tomás

Enfático, o homem ditava, alto e bom som para quem o quisesse ouvir, perante um punhado de microfones: ‘O Governo é que tem de dizer o que quer para o sector?’.

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E continuava, sugerindo que assim o Governo estava a mataria ou a oferece à esfola as pobres das empresas [do sector], coitadas, irresponsavelmente lançadas à fogueira da desgraça porque algum governante ou faz, ou ameaça, veto de gaveta a mais um episódio da insaciável pedinchice que nos assola.

Não interessa quem era o cavalheiro. E nem quero atribuir-lhe importância, nem dar-lhe pretexto para réplica em ‘defesa da honra e da dignidade’. Foi ele, poderia ter sido outro. Aliás, tantos outros. Imensos, uma legião deles. Depois, foi há poucos dias. Podia ter sido há uns meses. Ou hoje, ou na próxima semana. É garantido: a ladainha chorosa continua, infelizmente, generalizada. Tomo por garantido que nos massacrará os ouvidos durante as próximas décadas. Gostava que ninguém os ouvisse. Seria essa a eficaz e saudável extinção de toda uma espécie de parasitas. Não tenho grande fé nisso. Confesso, todavia, que a esperança é a última a morrer. Temo é ir-me embora deste mundo sem assistir a nada.

A enjoativa saga da pedinchice não é exclusiva do mundo dos negócios. Longe disso. É assim no Desporto. É o Governo que tem que dizer o que quer do futebol, das SAD’s, do lançamento do peso – quiçá do próprio peso – ou do rally de Portugal. E da arbitragem. É assim na Cultura. É ao Governo que cabe dizer se quer teatro ou cinema do tipo grande-plano-de-meia-hora-do-protagonista-principal. É, também, na Educação. É o governo quem tem que dizer que ensino quer para o país, que livros escolares podem ser comprados. E é nas OPAS: é o governo que tem que dizer o que é que quer para a Opada, bem assim como para o Oferente. Finalmente – e sem nunca chegar ao fim –, é o Governo quem tem que dizer se quer ‘centros de decisão’ em Portugal; ou se não. A pedinchice trespassa, pois, toda a sociedade. Está em todos os cantos da casa portuguesa, a meio da sala, nas caves, sótãos e elevadores.

Catadores de subsídios e franco-atiradores a sacos de dinheiro públicos, nacionais ou comunitários estão por todo o lado. E eis que a grande oportunidade – mais uma, seguida a outras definitivamente ‘perdidas’ – aí está: o QREN, sucessor dos Quadros Comunitários de Apoio (QCA). Um vultuosíssimo saco de dinheiro que, ou à descarada ou à escondida, já começou a ser avidamente disputado por políticos altruístas, promitentes de favores, empresários muito empreendedores, institutos públicos, associações empresariais, direcções regionais e comissões de coordenação, autarcas e câmaras, escolas, centros de ‘investigação’, universidades, hoteleiros, institutos e empresas de formação, escritórios de advocacia, prestadores de serviços de toda a espécie, agricultores, federações desportivas e clubes, artistas e companhias de teatro, arquitectos e realizadores de cinema, jardineiros e o Homem do Fraque.

Há dois anos, escrevi nesta coluna (já então bem ciente de que estava a repetir-me): ‘Talvez assim se compreenda melhor porquê, ao cabo de quase duas décadas de generosas ajudas comunitárias a Portugal, tantos são os que apontam a irreparável e voraz delapidação de riqueza a que se assistiu. Pior, em antecipação da expectável míngua de ajudas comunitárias que o Alargamento ao Leste inevitavelmente imporá a partir de 2007, a Legião da subsídio-dependência revela-se agora mais assanhada que nunca. É o vale-tudo, característico do saque perpetrado sobre a cidade conquistada ao inimigo. [?] Neste país, afinal, no discurso político ou na crítica dos media, importa, apenas e só, quanto se gasta, não como se gasta. É o eterno e enraizado primado da quantidade sobre a qualidade.’

Nem mudei ainda de opinião, nem auguro nada de bom. Os rostos e os protagonistas são os mesmos de sempre. Poucas caras mudaram. Seguramente, os seus modos de vida e de acção não terão mudado. E as caras novas replicarão e reiterarão hábitos antigos. A exemplo das outras vezes, também agora a propaganda e as promessas tentam convencer os mais crédulos acreditar que tudo vai mudar para muito melhor. Desta é que vai ser. Será? A única certeza que tenho é que as lógicas de actuação predadora, em que a vítima – no caso, o erário público – é sugada até cair exangue, propendem a repetir-se indefinidamente, enquanto o saco não estiver de novo vazio.

Na verdade, convenço-me de que os governos, quaisquer que eles sejam, não são o principal responsável pelo estado a que chegámos. São, quando muito, coniventes, acomodatícios e acomodados. Afinal, os portugueses – concedo, a larga maioria dos portugueses – têm a governação e as instituições públicas que correlativamente (também) merecem. As coisas são e funcionam assim porque, na sua larga maioria, os portugueses são assim, agem assim e pensam assim.

No fundo, temos pouco respeito por aquilo que é dos outros. E pouco ou nenhum respeito por aquilo que é público, que é de todos e, por isso, também nosso. Os ‘ouvidos de mercador’, o ‘faz de conta que não viu’, o ‘não é comigo’ e o ‘não é meu’, são nossos e muito nossos. O ‘deixa andar’ lusitano é a causa primeira deste estado de coisas. Do abandono de equipamentos públicos à impunidade do vandalismo de mobiliário urbano, passando pelas assembleias de condomínio a que só uma escassa minoria comparece ou pelas escolas em que papás e mamãs deixam os filhos à porta mas em que nunca entram, a nossa consciência cívica e social afundou-se em contínua delapidação nestas últimas décadas. No meio do pantanoso e relapso cabotinismo em que o país se atolou, nem as folclóricas sublevações pela ‘Causa de Timor’ em 1999 ou pela ‘Selecção das Quinas’ constituem excepção à regra.

Depois, a prática da pedinchice ao Estado sai da boca de muitos que pregam sermões em prol da anti-subsídio-dependência. Fica sempre bem dizer, aliás como bem prega Frei Tomás. No fundo, tudo se resume a uma questão de semântica, e o português é, todos estamos de acordo, uma língua muito traiçoeira.

É moda cansada citar Herculano, Eça ou Ortigão, associando ipsis verbis aos tempos modernos o que há mais de um século lúcida e mordazmente escreviam sobre a lusa pátria. Ou, até, a vetusta sabedoria tecnocrática de um Henrique Medina Carreira. Assim, é melhor lê-los em recato e silêncio, antes que me saia a deixa de que o Governo tem que decidir o que é que, afinal, quer para mim.

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