Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
26 de Maio de 2006 às 13:59

Oxalá alguém atenda

Segundo o último relatório e contas publicado, o Banco de Portugal contava com 1736 (!) funcionários em 31 de Dezembro de 2004. Todavia, os portugueses sabem bem que esse exército de gente não se ocupa nem se preocupa o suficiente em protegê-los enquanto

  • ...

De pequenino se torce o pepino. Com pouco mais de três anos de vida, a Autoridade da Concorrência (AdC) desde o berço que se esforçou por conquistar o estatuto de instituição incómoda. É certo que não há bela sem senão. Mas poucos o antecipariam à partida, habituados ao estilo modorrento, relaxado e permissivo da extinta Direcção-Geral do Comércio e da Concorrência. Facto é que a AdC goza hoje de invejada respeitabilidade no plano da regulação económica em Portugal, porventura só equiparável ao da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, criada em 1991. Como anda por aí muita gente em desesperada busca de instituições públicas de excelência em Portugal, aqui ficam dois exemplos. A meu ver.

Abel Mateus, presidente da AdC, é hoje uma voz tecnicamente respeitada, incómoda e temida. Cedo entendeu que a entidade a cujo destino foi chamado a presidir só granjearia credibilidade acaso assumisse a sua missão com grande determinação num ambiente adverso: um país em que a percepção e atitude cultural sobre questões de concorrência e regulação dos mercados é extremamente débil e não conta com tradição.

O presidente da AdC foi anteontem ouvido pela Comissão de Orçamento e Finanças do Parlamento, ocasião em que apresentou aos deputados uma comunicação intitulada «Concorrência nos Mercados Financeiros – Portugal versus União Europeia». E lá ousou tocar em duas «vacas sagradas»: a banca e os seguros. Do que disse e respondeu, duas notas sobressaíram. Primeiro, que se constata uma acentuada concentração na prestação de serviços bancários às famílias e PME. Segundo, que «não sabia responder» à questão sobre a eventual existência de cartelização no sector dos serviços financeiros em Portugal.

Abel Mateus sabe muito bem do que fala, quer como académico, quer como profissional. E daí o pertinente e justíssimo recado dirigido à «velha senhora» – leia-se, o Banco de Portugal -, instituição que o actual presidente da AdC bem conheceu por dentro durante os muitos anos em que integrou a sua Administração.

Segundo o último relatório e contas publicado, o Banco de Portugal contava com 1736 (!) funcionários em 31 de Dezembro de 2004. Todavia, os portugueses sabem bem que esse exército de gente não se ocupa nem se preocupa o suficiente em protegê-los enquanto consumidores de serviços financeiros.

Malogradamente, a comunicação social e os «analistas» só revelaram ânsia em sacar coelhos da cartola no que toca à OPA em curso no sector bancário, lendo as afirmações do presidente da AdC no sentido de um presumível veto à dita OPA.

Nada de mais precipitado. Abel Mateus sabe muito bem que, mesmo sem OPA, a situação actual é já alarmante. Foi isso mesmo que ele lá foi dizer. Na verdade, tudo aquilo que há não muitos anos os portugueses obtinham dos bancos a título gratuito ou sob preçários aceitáveis, a troco de confiarem poupanças e de assim oferecerem oportunidades de negócio aos banqueiros, é hoje pago a peso de ouro.

Alguns exemplos são elucidativos. Cheques, cartões de débito, transferências bancárias, instruções de pagamento, emissão de extractos de conta, emissão e execução de ordens de bolsa, custódia e guarda de valores, subscrição de títulos ou de fundos de investimento, cobrança de juros de obrigações ou de dividendos de acções. Tudo era ou gratuito ou, quando muito, sujeito a comissões aceitáveis. Hoje, tudo é gordamente pago. Pior, a voracidade não conhece limites.

A SIBS voltou à carga com a intenção de taxar as transacções via Multibanco feitas por depositantes. Há quatro anos atrás, o estudo e montagem de uma operação de crédito à compra de habitação era comissionada por um quarto ou um sexto do que hoje um cliente paga e não bufa. Os iludidos que durante anos a fio foram aplicando poupanças na subscrição de PPRs na mira de uma pequena economia fiscal assistem agora à corrosão da rendibilidade dos capitais investidos - e que não podem mobilizar antes da reforma, salvo em circunstâncias que nem a um inimigo se desejariam - por comissões de gestão que podem hoje «comer» metade ou mais dos rendimentos brutos gerados pela carteira em que o seu capital foi aplicado.

Milhares de clientes são regularmente confrontados com comissões cobradas por serviços não solicitados. Outros sofrem na pele com cartões de crédito emitidos ao abrigo de contratos eivados de cláusulas abusivas, só postas em causa quando um cidadão menos resignado se predispõe ao martírio de uma exasperante via-sacra de tribunais e advogados. A mera transferência para outro banco de uma conta de depósito a prazo poupança-habitação alcançou o estatuto de missão impossível. A mobilidade de um banco para outro está hoje severamente ameaçada por cláusulas subrepticiamente apostas em contratos de crédito, que contemplam «pacotes» de outros serviços cuja aquisição ou subscrição é obrigatória por parte do cliente. Chegamos ao ponto de qualquer um hoje pensar duas vezes antes de sacar do livro de cheques, o custo de preencher o papelinho passou a pesar na decisão. «Criação de valor», invocam os banqueiros. «Abuso de posição dominante» – retorquirão alguns.

É claro que a propensão nacional para a asneira e a devoção por teorias da conspiração fará assestar baterias na famigerada bruxa da cartelização. Todavia, o problema não parece ser de cartelização na banca e nos seguros mas, antes, um enorme défice de regulação das relações contratuais entre intermediários financeiros e os seus clientes com menor poder negocial, nomeadamente pequenos aforradores e PMEs.

Vai já para mais de três anos, escrevi nesta coluna: «No domínio dos serviços bancários, é praticamente nula a protecção assegurada aos particulares e aforradores pelo Banco de Portugal. Assobia-se para o lado. E o poder legislativo prefere furtar-se a uma disputa com o sacrossanto poder do sector bancário.»

Bem vistas as coisas, nem tudo está na mesma. Está pior. Abel Mateus só fez soar a campainha. Oxalá alguém atenda.

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio